"Vermines", um filme de terror sobre aranhas assassinas que invadem um prédio em ruínas, tornou-se o primeiro sucesso do ano na França.

As criaturas de oito patas não são a única surpresa no filme de baixo orçamento, sem distribuição anunciada para Portugal, que pela primeira vez retrata os subúrbios franceses, semelhantes a guetos, como mais do que apenas um covil de traficantes de drogas e terroristas.

Em vez disso, estes bairros são mostrados como lugares de solidariedade difícil, cujos problemas decorrem do abandono pela polícia, pela comunicação social e pela sociedade em geral.

“Queremos desafiar os estereótipos”, disse Olivier Saby, dos coprodutores Impact Films, empresa criada em 2018 com a missão de trazer mais diversidade aos cinemas franceses.

“O objetivo não é garantir que haja uma pessoa negra, árabe ou branca em cada cena”, disse à France-Presse (AFP).

"Queremos apenas que os filmes e a TV reflitam a vida real", sustenta.

“Se se entrar hoje num escritório de advocacia, por exemplo, encontrará muito mais diversidade do que quando vê um na TV”, defende.

Algo que pode e deve ser melhorado

Jean-Pascal Zadi

O cinema francês fez progressos sistemáticos em algumas áreas.

Foram mulheres cineastas que ganharam duas das últimas três Palmas de Ouro, o prémio principal do Festival de Cinema de Cannes. Três dos cinco nomeados para Melhor Realização nos prémios César (os "Óscares" da França) são mulheres (o galardão só foi atribuído por uma vez a uma mulher, Tonie Marshall, há 24 anos).

A questão da raça é mais complicada.

Alguns atores negros tornaram-se superestrelas na França, principalmente Omay Sy, a estrela de “Lupin”, e o comediante Jean-Pascal Zadi, cujas sátiras afiadas sobre política racial, “Simply Black” e “Represent”, ganharam prémios e foram grandes sucessos internacionais na Netflix.

Mas o progresso é dificultado porque continua a ser ilegal recolher dados sobre raça em França, alegando que isso perpetuaria divisões artificiais, diz Wale Gbadamosi Oyekanmi, um consultor de relações públicas que investe na Impact Film.

"A França não fala realmente sobre raça. Não se pode monitorizar a profundidade do desafio porque não se pode medi-lo" com estatísticas, disse à AFP.

“Há novas vozes que podem ser ouvidas, que refletem o país como ele é agora. É algo que pode e deve ser melhorado”, defende.

Os analistas contornam a questão ao medir como as pessoas são “percecionadas”, em vez de perguntarem diretamente sobre a sua raça.

Um estudo sobre 115 filmes franceses lançados em 2019 pelo grupo ativista 50/50 Collectif descobriu que 81% das personagens principais eram “percecionadas como brancas”.

Esta não é uma decisão comercial, afirma o grupo, já que o número caiu para 68% para os 15 filmes mais populares daquele ano.

Pervertendo a criatividade

"Vermines"

Mas os guardiões culturais da França ainda se irritam com a ideia de misturar questões sociais com criatividade, diz Marie-Lou Dulac, fundadora da consultoria em diversidade DIRE et Dire.

Muitos em França veem o incentivo à diversidade como uma forma de “perverter a criatividade”, garante.

“Na verdade é uma forma de renovar a criatividade, de encontrar novas histórias e personagens. Não podemos continuar a fazer a mesma velha caricatura de um filme francês – um casal profissional branco em Paris que se trai”, acrescenta a rir.

A Impact Films apoia filmes com protagonistas LGBTQ, deficientes ou minorias étnicas, diz Saby.

Financia documentários sobre questões ambientais e sociais e contrata pessoas de grupos sub-representados para trabalhar atrás das câmaras.

Também trabalha com argumentistas para evitar clichés.

“Por que os atores minoritários fazem sempre o papel de traficantes de drogas? Será que todos os heróis de ação têm de conduzir um carro com tração às quatro rodas?”, acrescenta.

Tal como noutros países, a pressão para a mudança desencadeia uma reação negativa.

Poderosos empresários da direita política francesa também se estão a dedicar a produções cinematográficas, como "Vaincre ou Mourir" ("Vitória ou Morte", em tradução literal) do ano passado, sobre a contra-revolução camponesa da década de 1790, um tema favorito dos ultra-conservadores pró-católicos e pró-monárquicos.

Foi produzido pela empresa responsável pelo parque temático Puy du Fou, propriedade do ex-candidato presidencial de extrema direita Philippe de Villiers.

O risco de uma reação negativa não é motivo para desistir, diz Saby, com "Vermines" a concorrer a dois prémios César e a caminho de se tornar o filme de terror francês de maior sucesso em quase 25 anos.

"Houve sempre essa batalha. Só que até agora só um lado estava a vencer", notou.

"Há muito espaço no ecrã para todos", tranquilizou.