
"It Was Just an Accident" (“Um Simples Acidente”, em tradução livre), do realizador dissidente iraniano Jafar Panahi, foi consagrado com a Palma de Ouro da 78.ª edição do Festival de Cannes, na cerimónia este sábado à noite no Palácio do Festival, o Grand Théâtre Lumière.
A história de um homem que descobre a identidade de quem acredita que foi o seu torturador, após um acidente fortuito nas ruas de Teerão, e decide sequestrá-lo, baseia-se em depoimentos de presos políticos que passaram décadas atrás das grades no Irão e com quem Panahi, preso duas vezes (86 dias em 2010 e quase sete meses entre 2022 e 2023), partilhou uma cela coletiva durante algum tempo.
O prémio é considerado um forte sinal político: o filme foi rodado sem autorização e em segredo, e vários membros da equipa foram presos após o anúncio em abril que competiria no festival.
"Acho que este é o momento de pedir a todas as pessoas, a todos os iranianos, com todas as opiniões diferentes, em qualquer parte do mundo, no Irão ou no mundo, deixem-me pedir uma coisa: vamos deixar de lado [...] todos os problemas, todas as diferenças, o mais importante agora é o nosso país e a liberdade do nosso país", disse o cineasta de 64 anos ao receber o prémio das mãos da atriz Cate Blanchett.
"Ninguém tem o direito de nos dizer o que temos ou não que fazer", continuou.
O realizador pôde apresentar-se pessoalmente em Cannes pela primeira vez em 15 anos e saiu com o prémio máximo após ser celebrado por títulos como "O Círculo" (Leão de Ouro de Veneza em 2000), "Táxi de Jafar Panahi" (Urso de Ouro em Berlim em 2015), "3 Rostos" (Melhor Argumento em Cannes em 2018) e "Ursos Não Há" (Prémio Especial do Júri em Veneza em 2022).

As curtas portuguesas a concurso, "Arguments in Favor of Love", de Gabriel Abrantes, e "A Solidão dos Lagartos", de Inês Nunes, ficaram sem prémios, mas houve cinema em língua portuguesa no palmarés: o cinema brasileiro continua a vaga de sucesso e nunca ganhou tanto numa edição de Cannes, já que, contrariando a tradição de não dar mais do que um prémio a cada filme, o júri distinguiu "O Agente Secreto" com Melhor Ator para Wagner Moura (ausente da cerimónia) e Melhor Realização para Kleber Mendonça Filho.
"É um grande ator e espero que 'O Agente Secreto' lhe traga muitas coisas boas", declarou o realizador quando recebeu o prémio em nome do seu protagonista de 48 anos.
Algum tempo mais tarde, regressou pela segunda vez para falar.
"Estava a beber champanhe pelo prémio do Wagner Moura", declarou Mendonça Filho, um pouco surpreendido.
"O meu país, o Brasil, é um país cheio de beleza e poesia. Estou muito orgulhoso de estar aqui esta noite. Penso que Cannes é simplesmente a catedral do cinema neste planeta", acrescentou o cineasta, que misturou português, francês e inglês no discurso.
A longa-metragem, que será distribuída em Portugal pela Nitrato Filmes, com data de estreia para breve, já conquistara um prémio fora da competição oficial, considerado o melhor do festival pelo júri da crítica da Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema).
Tal como o recente vencedor do Óscar de Melhor Filme Internacional "Ainda Estou Aqui", a proposta é um 'thriller' político ambientado no final dos anos 1970, durante a ditadura militar brasileira, mergulhando nas tensões de um país sob o regime militar, onde um especialista em tecnologia regressa à cidade natal do Recife em 1977 em busca de tranquilidade, mas depara-se com um ambiente carregado de segredos e perigos.

O Grande Prémio, o segundo lugar no palmarés dos filmes, foi para "Sentimental Value", o regresso triunfal do realizador Joachim Trier e da sua atriz favorita Renate Reinsve a Cannes quatro anos com "A Pior Pessoa do Mundo".
Muitos apostavam que seria o vencedor da Palma após as reações de êxtase ao drama sobre o regresso de um pai (Stellan Skarsgard), um realizador veterano que se separou da mãe há vários anos e tenta refazer os laços familiares ao fazer um filme com uma das suas duas filhas (Reinsve) e convence uma estrela conhecida (Elle Fanning) a juntar-se ao elenco.

O Prémio do Júri, um terceiro lugar, revelou um empate entre "Sirât", de Oliver Laxe, um drama familiar em registo de 'road movie' ao ritmo de música eletrónica ambientado no deserto marroquino, e "Sound of Falling", de Mascha Schilinski, um drama coral sobre mulheres de quatro gerações diferentes numa propriedade rural no centro da Alemanha.
"Viva as diferenças, viva as culturas e viva o Festival de Cannes", declarou Laxe ao receber o prémio, que, nascido em Paris, filho de imigrantes, é autor de um cinema intimista e espiritual. Em todas as ocasiões em que esteve em Cannes, saiu com alguma distinção.
Um Prémio Especial, que foi uma prerrogativa do júri, foi reservado para "Resurrection", de Bi Gan, um quebra-cabeças visual concebido por um jovem cineasta que mistura a história da China com uma homenagem ao cinema.
A francesa Nadia Melliti recebeu, aos 23 anos, o prémio de Melhor Atriz pelo seu primeiro papel no cinema em "La Petite Dernière": estudante de Educação Física, foi descoberta num teste de casting sem atores profissionais.
O papel que lhe valeu a distinção foi o de Fatima, uma jovem de 17 anos que vive nos subúrbios de Paris com a sua família, de origem argelina. Muçulmana praticante, descobre pouco a pouco a sua atração por mulheres enquanto prossegue os estudos e entra para a universidade.
Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, que já ganharam por duas vezes a Palma de Ouro ("Rosetta" em 1999 e "A Criança" em 2005), não foram esquecidos no palmarés, mas ficaram pelo prémio de Melhor Argumento por "Jeunes Mères", novo drama social sobre cinco mulheres acolhidas num centro onde recebem apoio como mães adolescentes.
Composto por nove membros (cinco mulheres e quatro homens), o júri liderado pela atriz francesa juntava os atores norte-americanos Halle Berry e Jeremy Strong, a atriz italiana Alba Rohrwacher, o realizador sul-coreano Hong Sang-soo, a realizadora indiana Payal Kapadia, o realizador congolês Dieudo Hamadi, o realizador mexicano Carlos Reygadas e a escritora e jornalista franco-marroquina Leila Slimani.
Os prémios foram entregues após a cidade ter ficado várias horas sem energia elétrica devido a um ato de sabotagem que causou um grande apagão no sudeste da França. O Palácio do Festival, na Croisette, dispõe do seu próprio gerador e manteve todos os eventos marcados.
A cidade de 73 mil habitantes retomou progressivamente a normalidade ao longo da tarde, após um apagão de cinco horas e meia atribuído a "atos mal-intencionados" segundo a câmara municipal: durante a madrugada, foi declarado um incêndio numa central de produção de energia elétrica e um poste de uma linha de alta tensão em Cannes foi sabotado, segundo fontes oficiais.

Palmarés oficial da 78.º Festival de Cannes
Palma de Ouro
"It Was Just an Accident", de Jafar Panahi (Irão, França, Luxemburgo)
Grande Prémio
"Sentimental Value", de Joachim Trier (Noruega, França, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Reino Unido)
Prémio do Júri
"Sirât", de Oliver Laxe (Espanha, França), ex aequo com "Sound of Falling", de Mascha Schilinski (Alemanha)
Melhor Realização
Kleber Mendonça Filho por "O Agente Secreto" (Brasil, França, Alemanha, Holanda)
Melhor Atriz
Nadia Melliti por "La Petite Dernière" (França, Alemanha)
Melhor Ator
Wagner Moura por "O Agente Secreto" (Brasil, França, Alemanha, Holanda)
Melhor Argumento
"Jeunes mères", de Jean-Pierre e Luc Dardenne (Bélgica, França)
Prémio Especial
"Resurrection", de Bi Gan (China, França)
Câmara de Ouro Para Melhor Primeiro Filme
"The President’s Cake", de Hasan Hadi (Iraque, Catar, EUA)
Menção Honrosa, Câmara de Ouro
"My Father’s Shadow", de Akinola Davies Jr. (Reino Unido, Irlanda, Nigéria)
Palma de Ouro para Melhor Curta-Metragem
"I’m Glad You’re Dead Now", de Tawfeek Barhom (Palestina, França, Grécia)
Menção Honrosa, Curta-Metragem
"Ali", de Adnan Al Rajeev (Bangladesh, Filipinas)
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