Embora as câmaras não possam entrar em Gaza, o conflito regressa a Cannes, com uma conotação particularmente trágica: a morte em abril de uma fotógrafa palestiniana, tema de um documentário, por um míssil israelita.

A exibição da longa-metragem "Put Your Soul on Your Hand and Walk" ("Coloca a tua alma na tua mão e caminha", em tradução livre) será um dos momentos emocionantes do festival.

Esta guerra já estava presente no ano passado. Um dos momentos mais virais foi quando a atriz Cate Blanchett usou um vestido que evocava as cores da bandeira palestiniana.

E dada a mobilização dos artistas, os discursos na cerimónia de abertura poderão mencionar o conflito.

Na abertura da Berlinale, em fevereiro, Tilda Swinton denunciou "a desumanidade perpetuada perante os nossos olhos" e os planos de Donald Trump para a região, sem mencionar Israel ou Gaza diretamente.

Quanto aos filmes, duas longas-metragens abordam o tema a partir de uma perspectiva ficcional.

"Yes", de Nadav Lapid

Com coprodução da portuguesa Ukbar Filmes, "Once Upon a Time in Gaza" ("Era Uma Vez em Gaza") é a obra dos irmãos Tarzan e Arab Nasser, moradores de Gaza exilados há anos e cujas fábulas tragicómicas falam da sua terra natal.

O cineasta israelita Nadav Lapid, um intelectual muito crítico das orientações políticas do seu país, foi selecionado à última hora para a Quinzena dos Realizadores com "Yes" ("Sim").

O filme passa-se em Israel, um dia depois do 7 de outubro, e conta a história de um músico que é contratado para escrever a melodia de um novo hino nacional.

"Horror"

"Put Your Soul on Your Hand and Walk"

A sessão mais emocionante promete ser a estreia mundial, a 15 de maio, de "Put Your Soul on Your Hand and Walk".

Fatima Hassouna, uma jovem de Gaza de 25 anos que fotografou a sua vida quotidiana durante a guerra, é o tema deste documentário da cineasta iraniana Sepideh Farsi.

A 15 de abril, a jovem soube que o filme fora selecionado. No dia seguinte, um míssil reduziu a sua casa a cinzas, matando a sua família com ela. Apenas a sua mãe sobreviveu.

Esta exibição na Acid Cannes, a menos conhecida das mostras paralelas, será "uma forma de homenagear a memória [da fotógrafa], vítima como tantas outras da guerra", sublinhou o Festival de Cinema de Cannes, que expressou o seu "horror" pela morte.

Várias organizações do mundo cinematográfico solicitaram uma homenagem nesta ocasião.

Até o fim, Sepideh Farsi, de 60 anos, refugiada política na França, acreditava que a jovem "viria [ao festival], que a guerra iria acabar", explicou à agência France-Presse (AFP).

E acrescentou: "Estávamos errados ao acreditar; a realidade ultrapassou-nos."

O seu sorriso "para sempre"

A realizadora Sepideh Farsi olha para uma fotografia da palestiniana Fatima Hassouna, a 5 de maio de 2025

Israel proíbe a entrada da imprensa internacional em Gaza. A cineasta, que já filmara clandestinamente com um telemóvel no Irão, estabeleceu uma ligação remota através de uma chamada de vídeo com Fatima Hassouna, que regularmente partilhava as suas fotografias nas redes sociais.

Algumas serão exibidas em Cannes.

"O sorriso dela atravessa o filme. O seu olhar, os seus olhos verdes que mudam de cor dependendo da luz (...) Todos esses momentos, felizmente, são filmados e estarão lá para sempre", acrescenta a realizadora.

O ataque de 7 de outubro de 2023 matou 1.218 pessoas do lado israelita, a maioria civis, de acordo com uma contagem da AFP baseada em dados oficiais.

Das 251 pessoas sequestradas naquele dia, 58 permanecem detidas em Gaza, das quais 34 foram declaradas mortas pelo exército israelita.

O Hamas também mantém o corpo de um soldado israelita morto numa guerra anterior em Gaza em 2014.

A campanha de retaliação israelita deixou mais de 52.787 mortos em Gaza, a maioria civis, segundo dados do Ministério da Saúde do território palestiniano, considerados confiáveis ​​pela ONU.

Fatima Hassouna "disse em várias ocasiões que documentava esta guerra (...) também a vida em Gaza, para passá-la aos outros e aos filhos que ela queria ter", diz Sepideh Farsi. "Achei maravilhoso. Infelizmente, nunca os terá".