
Tal como a história no seu novo e aclamado filme "Verdades Difíceis", o veterano realizador britânico Mike Leigh oscila entre a gratidão e o desespero ao refletir sobre a sua vida e carreira.
Aos 82 anos, o cineasta está ciente da grande sorte que teve ao fazer mais de uma dúzia de filmes ao longo de cinco décadas de carreira, incluindo "Segredos e Mentiras" e "Vera Drake".
Mas também está ciente das dificuldades enfrentadas pelas gerações mais jovens — e está assustado com as mudanças "profundamente preocupantes" em curso no mundo sob o governo do presidente norte-americano Donald Trump.
"É um privilégio poder fazer filmes, e é um privilégio que se está a tornar cada vez mais difícil de ter", disse Leigh à agência France-Presse AFP durante uma retrospectiva do seu trabalho na prestigiosa Cinemateca de Paris em março.
"Considero-me muito afortunado. Fazer filmes é uma experiência alegre."
Já a trabalhar no seu próximo projeto, apesar dos seus crescentes problemas de mobilidade — sofre de uma doença muscular genética chamada miosite, uma inflamação dos músculos — Leigh diz que está perturbado pela sensação de que o mundo está à beira do abismo.
"Parece que a Terceira Guerra Mundial pode estar próxima. Bem, nunca pensei que diria isto e tenho idade suficiente para me lembrar do fim da Segunda Guerra Mundial, quase. Nasci na guerra", acrescentou [20 de fevereiro de 1943].
"É profundamente preocupante e uma pessoa sente-se impotente."
Uma das estreias da semana nos cinemas portugueses, "Verdades Difíceis", elogiado como um dos filmes recentes mais fortes de Leigh, é uma história comovente e, às vezes, sombriamente cómica, de duas irmãs que arrebata os espectadores com emoções semelhantes contrastantes.
Segredo da vida?

A protagonista, Pansy, é uma mulher casada, claramente deprimida, ansiosa e agressiva, mãe de um filho, interpretada com entusiasmo pela atriz britânica Marianne Jean-Baptiste.
A sua irmã, Chantelle (Michele Austin), é amigável, sociável e tranquila, com uma vida familiar e doméstica contrastantes.
O filme reúne os dois atores britânicos negros de "Segredo e Mentiras", quase 30 anos após a conquista da Palma de Ouro no Festival de Cannes e uma série de nomeações para os Óscares.
Enquanto o sucesso de 1996 tratava de família e identidade, "Verdades Difíceis" é um estudo sobre o que torna algumas pessoas pessimistas e autocompassivas, enquanto outras parecem superar as dificuldades da vida com um sorriso no rosto.
Como de costume, Leigh não oferece respostas óbvias no ecrã — e esquiva-se de uma pergunta sobre o que pensa sobre o assunto.
"Está a perguntar-me qual é o segredo da vida? Não sou tão pretensioso nem tão presunçoso a ponto de pontificar sobre como viver", responde.
"Trabalhei muito. Usei a minha imaginação. Estava envolvido. Para mim, o importante é envolver-me com as pessoas."
"Algo natural"

"Verdades Difíceis" é a primeira vez que Leigh trabalha com um elenco quase totalmente negro, retratando a vibrante comunidade caribenha de Londres.
Ele não tem paciência para sugestões de que ele, um realizador branco, deveria hesitar em aceitar tal desafio.
"Parecia algo natural. Não é um salto quântico. Criei os meus filhos no norte de Londres, onde eles estudavam e crianças negras estavam sempre a entrar e sair de casa", explicou.
"Mas, por outro lado, é óbvio que não conseguiria sentar-me numa sala e escrever um argumento convencional para um filme como este."
Ele usou a mesma abordagem de colaboração que vem adotando ao longo da sua carreira, começando com uma ideia e, em seguida, realizando 'workshops' com os atores para desenvolver as personagens, os diálogos e o enredo.
A decisão de centrar-se em personagens negras

"Uma das coisas que fiz conscientemente foi dizer: 'Este não será um filme que lida com tropos, estereótipos, problemas com a lei, questões de drogas e toda essa parte dos gangues'", continuou Leigh.
"As principais questões do filme são universais e não endémicas ou exclusivas de pessoas negras", acrescentou.
Ele recusa-se a falar sobre o seu próximo projeto, mas diz que encontrar financiamento está a tornar-se cada vez mais difícil porque os patrocinadores — principalmente as plataformas de streaming — querem ter muita influência no produto final.
"É muito, muito deprimente e muito preocupante", concluiu.
"Converso com potenciais patrocinadores e eles dizem: 'Respeitamos o que vocês fazem, gostamos do que vocês fazem, mas não é para nós'", diz.
"'Não é para nós' é um código para: 'Não vamos envolver-nos num projeto no qual não podemos interferir, insistir em escolher estrelas de Hollywood, não podemos estragar o final, não podemos influenciar enquanto tenta filmar, etc., etc.'
VEJA O TRAILER DE "VERDADES DIFÍCEIS".
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