Era 01h32 na cerimónia dos prémios Goya em Granada quando se registou um momento histórico e insólito: Belén Rueda abriu o envelope de Melhor Filme ao lado do realizador Alejandro Amenábar e dos atores Javier Bardem, Lola Duenas e Tamar Novas, toda a equipa de "Mar Adentro" reunida 20 anos depois, e anunciou "El 47".

Seguiram-se de imediato os festejos da equipa do filme quando a atriz abriu os braços para chamar a atenção e acrescentou, para espanto geral dos que estavam ao seu lado e do público, que era 'ex aequo' e se virou para a equipa de "La Infiltrada" para anunciar que também era vencedora.

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Por segundos, parecia a repetição na cidade andaluza do que aconteceu em Los Angeles nos Óscares de 2017, o da célebre confusão dos envelopes entre "La La Land" e "Moonlight, mas efetivamente a votação dos dois mil membros da Academia de Cinema de Espanha tinha levado a algo inédito nos 39 anos dos Goyas e após uns primeiros momentos de confusão, as equipas dos dois filmes juntaram-se em palco para celebrar e agradecer a decisão.

O ator Tamar Novas explicou o que se passou já nos bastidores: foi ele que percebeu que havia uma folha branca que dizia em letra muito pequena 'ex aequo' e, portanto, existia uma segunda cartolina dourada com "La Infiltrada" (percebe-se no vídeo que a atriz abre o envelope e tira a folha branca sem ver com atenção, agarrando pelo cimo, precisamente onde estava escrito o aviso).

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Tal como os Óscares, a cerimónia dos Goya estava prevista para três horas de duração e, entre discursos, atuações musicais, evocações especiais de "Mar Adentro" (vencedor de 14 Goyas e último Óscar de Melhor Filme Internacional de Espanha) e da falecida atriz Marisa Paredes, chegou quase às quatro: 'depois de uma cerimónia chata, começou o grande espetáculo, os fogos de artifício', descreveu o direto do jornal El País, destacando que foi uma gala de prémios 'estupendos' e 'discursos terríveis'.

Ambos inéditos em Portugal, "El 47" ganhou cinco prémios em 14 nomeações (Melhor Filme, Ator Secundário para Salva Reina, Atriz Secundária para Clara Segura, Supervisão de Produção e Efeitos Especiais), enquanto "La Infiltrada" teve dois em 13 (Melhor Filme e Atriz Principal para Carolina Yuste).

Eram os mais nomeados para os "Óscares de Espanha", mas o palmarés foi muito repartido, com "O Quarto ao Lado" a ganhar três categorias em 10 nomeações: Melhor Argumento Adaptado para Pedro Almodóvar, Fotografia e Banda Sonora, com Alberto Iglesias a aumentar o seu recorde como maior vencedor individual para 12 prémios.

O realizador alegou doença para cancelar a presença em cima da hora, mas o seu irmão Agustín leu o discurso, onde, evocando o tema da sua primeira longa-metragem em inglês, disse: 'Acredito que o ser humano deve ser dono da sua vida e também da sua morte quando a vida só lhe oferece dor."

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Para "Segundo Premio", filme sobre o grupo musical Los Planetas, também houve três prémios em 11 nomeações: Melhor Realização para Isaki Lacuesta e Pol Rodríguez, Montagem e Som.

Houve ainda dois prémios cada para "La Virgen Roja" (Direção Artística e Guarda-Roupa, em nove nomeações), "La Estrella Azul" (Melhor Ator Revelação para Pepe Lorente e Realizador Estreante para Javier Macipe, em oito), "Marco" (Melhor Ator Principal para Eduard Fernández e Caracterização, em cinco) e "La guitarra flamenca de Yerai Cortés" (fez o pleno: Canção Original e Documentário).

Com um prémio cada ficaram "Salve María" (Atriz Revelação para Laura Weissmahr), "Mariposas Negras" (Melhor Longa-Metragem de Animação), "Casa en llamas" (Argumento Original), "Cafune" (curta de animação), "La gran obra" (curta de ficção), "Semillas de Kivu" (curta documental), "Emília Pérez" (Filme Europeu) e "Ainda Estou Aqui" (Filme ibero-americana).

Os dois Melhor Filme

"El 47"

“El 47”, dirigido por Marcel Barrena e protagonizado por Eduard Fernández (Goya de Melhor Ator, mas por "Marco"), conta a história de um motorista de autocarro de Barcelona, ​​Manuel Vital, que decide fazer justiça pelas próprias mãos.

A verdadeira história sobre as lutas de bairro de Barcelona, ​​ambientada numa favela da capital catalã na década de 1970, mostra “gente boa, como Manuel Vital, que lutou pela dignidade do seu povo”, disse um emocionado Barrena ao receber o principal troféu da noite.

"La infiltrada"

Já "La infiltrada", a companheira de pódio, é a história verídica de uma jovem polícia que conseguiu ser recrutado num dos comandos mais procurados da organização armada basca ETA.

Dirigido pela catalã Arantxa Echevarría, este 'thriller' foi o segundo filme espanhol de maior sucesso nas bilheteiras de 2024, com quase 1,3 milhões de espectadores e mais de 8 milhões de euros de receita.

Para a Melhor Atriz Carolina Yuste, é o segundo Goya da sua carreira, depois de ser Melhor Atriz Secundária por "Carmen y Lola" (2018), da mesma realizadora: aos 33 anos, confirma-se como um dos principais talentos da representação no país vizinho.

Numa noite em que foram ouvidas várias reivindicações em palco pela paz em Gaza e a favor da imigração, entre outras, Yuste pediu que fosse resolvida a crise imobiliária espanhola.

"Sou uma privilegiada, posso pagar o aluguer da minha casa. Por favor, mais uma coisa que vou pedir, o direito a uma residência digna para todas as pessoas", afirmou.

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"Ainda Estou Aqui" também aclamado e um prémio para "Emília Pérez", apesar da polémica

"Ainda Estou Aqui"

Na secção que premia o melhor filme latino-americano, confirmou-se o favoritismo do brasileiro "Ainda Estou Aqui", que está também nomeado para três Óscares, incluindo Melhor Filme.

O realizador Walter Salles dedicou o prémio ao "cinema brasileiro" através do músico uruguaio Jorge Drexler, que recebeu a estatueta, já que não esteve presente na cerimónia.

Lembrou, além disso, que a obra é sobre a memória de uma família "durante a longa noite da ditadura militar no Brasil".

O filme relembra a história do ex-deputado Rubens Paiva, que foi preso, torturado e morto pela ditadura brasileira em 1971, e da mulher, a ativista e advogada Eunice Paiva, que teve de retomar sozinha a vida familiar, com os filhos, e que tentou reclamar justiça pela morte do marido, cujo corpo nunca foi encontrado.

VEJA O DISCURSO LIDO DE WALTER SALLES.

Já "Emília Pérez" ganhou o Goya de Melhor Filme Europeu, no meio do escândalo desde 30 de janeiro envolvendo mensagens nas redes sociais de anos recentes da sua protagonista (a votação da Academia terminou a 24 de janeiro).

Nessas publicações, divulgadas por uma jornalista norte-americana, Karla Sofía Gascón descreveu o Islão como um "foco de infeção para a humanidade" e ironizou sobre o movimento antirracista após a morte de George Floyd, afro-americano morto pela polícia em 2020, entre outros temas.

O prémio foi recebido por Miguel Morales e Enrique Costa, representantes da distribuidora do filme na Espanha, que recordaram os mais de 250 mil espectadores que o viram nos cinemas (e como isso era importante), as muitas distinções recebidas desde a antestreia mundial no Festival de Cannes.

"Também é o filme não falado em inglês com mais nomeações aos Óscares, entre elas Melhor Filme e Melhor Atriz para Karla Sofía Gascón. Perante o ódio e o ridículo, mais cinema e mais cultura”, disseram.

VEJA O DISCURSO DOS REPRESENTANTES DE "EMÍLIA PÉREZ".

A imprensa espanhola especulava há algum tempo sobre a possibilidade de Gascón, que teve de cancelar a presença em vários eventos nos EUA, comparecer nos Goya. Mas a atriz, que vive perto de Madrid, acabou por não se deslocar a Granada.

O 'cancelamento' da atriz transgénero e a segunda espanhola nomeada para os Óscares depois de Penélope Cruz, foi, segundo o El País, o tema central das conversas nos bastidores e na passadeira vermelha, onde também se discutiu a ascensão da extrema direita e a diversidade dos filmes nomeados: dividiram-se opiniões e renovou-se o eterno debate sobre se é possível separar a arte do artista, a que se acrescentou outro, o de que até que ponto a transfobia afetou o escândalo.

O realizador J.A. Bayona (vencedor no ano passado com "A Sociedade da Neve") considerou que 'Karla equivocou-se, as suas mensagens são indesculpáveis', mas criticou o 'linchamento' a que foi submetida.

Presente na cerimónia, o presidente do Governo espanhol, o socialista Pedro Sánchez, evitou nomear Gascón, mas destacou 'os aspetos positivos de uma sociedade espanhola que abraça sempre este tipo de valores, o da diversidade, do respeito, da tolerância'.

Richard Gere critica Trump

O ator norte-americano Richard Gere recebeu o Prémio Goya Internacional honorário e carregou nas críticas a Donald Trump.

"Venho de um lugar onde estamos num momento muito sombrio, os EUA, onde temos um rufia, um criminoso, que é o presidente dos EUA. Mas não é apenas nos EUA, está em toda parte [...]", disse o ator de 75 anos durante o discurso em inglês.

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O ator de filmes como "Dias do Paraíso", “American Gigolo”, "Oficial e Cavalheiro", "Cotton Club", “Pretty Woman - Um Sonho de Mulher" e "Chicago" já criticara Trump em termos fortes durante uma conferência de imprensa na sexta-feira em Granada, a cidade que recebeu a cerimónia.

No sábado, foi Antonio Banderas quem entregou o prémio honorário pela 'sua extraordinária contribuição à arte do cinema' e o seu ativismo social com diversas causas, incluindo a situação dos refugiados e os deslocados.

Durante o seu discurso, Gere alertou para o 'casamento sombrio' entre poder e dinheiro 'como nunca vimos antes'.

E acrescentou: 'O facto de estes irresponsáveis ​​e talvez perigosamente corrosivos multimilionários estarem a comandar tudo na América neste momento é um perigo para todos neste planeta.'

A qualidade das legendas em castelhano na transmissão da gala na TVE foi muito criticada nas redes sociais em mensagens à Academia de Cinema, que confirmou ao El País que uma pessoa traduziu o discurso em simultâneo e que o ator não entregou previamente um texto à organização, avisando que iria improvisar.

Gere é também um defensor de longa data da causa do Tibete, que se reuniu frequentemente com o Dalai Lama, o líder espiritual tibetano exilado que Pequim acusa de fomentar o separatismo na região dos Himalaias.

No ano passado, Gere e a sua esposa espanhola, a publicitária Alejandra Silva, de 41 anos, mudaram-se para Madrid com os dois filhos.