- Alguém ainda não ouviu o novo disco de Daft Punk? Está em streaming à borla na net, já leakou em versões oficiais e oficiosas vinte vezes, há covers, versões, remixes, cabras a cantar. Antes de sequer chegar às lojas, teve aquela série de vídeos dos Collaborators, teasers de teasers, um single, capas de revistas sem fim. Até a Pitchfork se rendeu. É só marketing, esse disco.

- Sim, a campanha de lançamento foi genial, mas já ouviste o disco?

- Ouvi sim senhor. E acho uma parvoíce. O hype foi tão grande que estava à espera que a minha cabeça explodisse com a novidade e começasse a sangrar das orelhas. Estava à espera de algo tão inesperado e polémico como quando eles começaram. Afinal, prometeram-nos reinventar a música eletrónica. A verdade é que aquilo soa a anos 70 e 80 requentados e tem lá as múmias que ajudam a isso, o Moroder e o Rodgers e o Williams.

- O Pharrell?

- Não, o Paul.

- Essas múmias como tu lhes chamas foram importantíssimas a definir a pop dos últimos 30, 40 anos, são grandes músicos e produtores, referências bem recuperadas para injetar alguma vida à pop atual em que é tudo parecido. E também há o Casablancas e o Panda Bear e o Pharrell, claro. Esses também são múmias?

- Boas maneiras de vender o disco a mais gente.

- Não sejas assim, são contribuições excelentes. O disco é variado e complexo, exige ser ouvido várias vezes.

- Eu sei que ninguém tem memória hoje em dia. Mais e mais informação, criação, produção humana está disponível de forma quase instantânea. São imensos os casos bizarros que demonstram isto na internet: gente que morre todos os anos só porque alguém volta a publicar a notícia; bandas que fazem covers de originais em que os autores originais são acusados de imitadores, só porque os primeiros têm mais “fãs”. É uma confusão. Por isso é natural que haja gente a ouvir isto e a pensar que é novo.

- Mas ouve lá, a música pop sempre viveu da nossa memória curta e da nossa vontade de regressar a lugares sonoramente confortáveis – o digital só o veio reforçar. A reciclagem de acordes, ritmos, arranjos, processos, formações de bandas, o reinventar de sons já inventados, o eterno retorno do rock, do funk, do folk, da soul, deste ou daquele sample, deste ou daquele ritmo fazem parte do dia-a-dia da música popular. O que não é necessariamente mau, se nos soubermos orientar.

- Estás a dar-me razão.

- Nada disso. O que é interessante neste disco é esta reciclagem permanente ser assumida, trabalhada, explicada, demonstrada sem pudor e acabar por se revelar como um nó no contínuo espaço-temporal da música que ouvimos hoje em dia. São trinta, quarenta anos de música reinventados. É uma ambição tremenda. Se o achamos diferente ou igual, cool ou cheesy, chato ou divertido, reacionário ou inovador parece-me ser mais uma questão pessoal.

- Que drogas é que tu andas a tomar?

- No fim, o que vale mesmo a pena é ouvir. Até porque se pode ouvir antes de comprar, antes de decidir recompensar o artista. Por mim gosto muito da “Instant Crush” que me parece melhor que o último álbum de Strokes, da “Lose Yourself To Dance” e da “Get Lucky” que me dão vontade de dançar, da “Doing It Right” mesmo não mencionando o Benfica nem estando na banda sonora de um filme dos anos 80, a “Motherboard” lembra-me Moloko e o delírio final de “Contact” encerra bem o álbum.

- Põe lá isso a tocar outra vez.

@Luís Soares