"Here I am, not quite dying", avisa-nos David Bowie na faixa-título - e também tema de abertura - de "The Next Day", o disco que interrompe um hiato de dez anos de edições (desde "Reality", de 2003) vincado por uma discrição artística e mediática. Uma canção assim, enérgica e elétrica, garante-nos que, sim senhor, o britânico está bem vivo e recomenda-se, impressão que os dois singles de avanço ainda não tinham conseguido despertar por completo.

Por muito que "Where Are We Now?" tenha deixado, tanto na letra como no videoclip, piscadelas de olho à fase berlinense de Bowie, a canção divulgada, sem qualquer pré-aviso, no 66ª aniversário do cantor (a 8 de janeiro), valeu sobretudo pelo efeito surpresa. É verdade que os fãs mais acérrimos do artista que já foi Ziggy Stardust ou Thin White Duke esfregaram as mãos de contentamento com as referências, mas para os outros (e também os há, embora o alvoroço mediático talvez o ofusque) o ambiente de alguma modorra meditativa não foi necessariamente a forma mais entusiasmante de anunciar um regresso.

Mais acelerado e radiofónico, "The Stars Are Out Tonight" apostou num pop-rock sumptuoso, mas de sabor algo requentado, e as suas considerações sobre a vida dos famosos tiveram no acompanhamento visual a sua mais-valia: o videoclip do tema juntava Bowie a Tilda Swinton, não por acaso uma das atrizes mais camaleónicas das últimas décadas, e o carisma do casal compensava um single apenas regular.

Videoclip de "The Stars Are Out Tonight":

O arranque frenético e aliciante de "The Next Day" deixa-nos, por isso, mais descansados em relação a um disco que tem, afinal, mais (e melhor) para oferecer do que essas duas portas de entrada. Daí a conseguir ombrear com os clássicos do percurso do seu autor é que já vai alguma distância. Em vez das revoluções e mutações da trilogia berlinense - "Low" (1977), "Heroes" (1977) e "Lodger" (1978) -, o álbum está mais próximo da mediania segura de "Heathen" (2002) e "Reality" (2003), os dois antecessores imediatos que passaram ao lado dos holofotes. "The Next Day" acaba por ser, até, a parte final de uma segunda trilogia (com eventuais novos capítulos) que contou com a produção de Tony Visconti, a escolha automática de Bowie para a preparação deste regresso nos últimos dois anos. As sessões de gravação repescaram ainda os músicos do disco anterior, todos cúmplices de um secretismo apenas terminado, intencionalmente, em inícios de janeiro - o que, numa era em que a informação circula quase à velocidade da luz, é por si só um feito.

Em "The Next Day", a produção de Visconti é tanto melhor quanto mais árida, suja e ferrugenta, elementos que contribuem para o brilho particular de "Dirty Boys", cujo saxofone lembra Tom Waits ou os Morphine mas com um refrão que não deixa dúvidas sobre quem assina o tema. Também de compasso lento e sinuoso, "Love Is Lost" é um momento exemplar de dramatismo e ansiedade, protagonizado por uma rapariga de 22 anos para quem o medo é a sensação mais familiar. Outro ponto alto, "Valentine's Day" é o single refrescante que "The Stars (Are Out Tonight)" não conseguiu ser, com a melodia a tirar partido da guitarra e da leveza das segundas vozes. "Boss of Me" traz de volta o saxofone numa conversa insinuante entre pop e sugestões soul, antecedendo o cenário de guerra visto por um jovem soldado, em modo psicadélico, no relato de "I’d Rather Be High".

Videoclip de "Where Are We Now?":

Se canções como estas justificam o regresso e parecem sugerir um álbum forte, "The Next Day" acaba por ser vítima da sua duração. 14 faixas (ou 17, na edição especial) tornam-se demasiadas quando o alinhamento, além de ser ainda mais fragmentado do que versátil, também inclui episódios apenas aceitáveis como lados B, sobretudo no último terço (e até antes, como no frenesim com aspirações épicas de "If You Can See Me", update forçado dos ambientes dançáveis de "Earthling", de 1997).

Álbum de recortes que triunfa mais por alguns momentos isolados do que pela visão de conjunto, "The Next Day" é tão anacrónico como os discos de Bowie têm sido desde "hours..." (1999), o que não é necessariamente um defeito, muito menos para os convertidos. Mesmo assim, tendo em conta o título ou a capa (que recupera e desconstrói a de "Heroes"), já para não falar da expectativa alimentada por um regresso tão súbito quanto bem orquestrado, o eventual passo em frente revela-se antes um passo ao lado. Depois de retomada, a caminhada poderá não ficar por aqui: o disco revela apenas 17 dos 29 temas gravados nos últimos dois anos e, embora morno, deixa-nos vontade de ouvir mais. Bowie, mantendo a carga teatral que lhe é reconhecida, não diz que não e, por agora, sabe fazer uma despedida em alta, guardando para o final da edição especial de "The Next Day" a sua canção mais flamejante, "Take You There". "Hold my hand and I'll take you there", grita entre riffs efusivos, e a pujança é tão convidativa que não há como não lhe darmos a mão até ao próximo dia...

@Gonçalo Sá