Fez-se notar, ainda que não muito, ao lado dos The Czars, banda da qual foi mentor, entre meados dos anos 1990 e 2004, e que conquistou uma progressiva atenção e apreço da crítica sem conseguir replicar esse efeito junto do público. Mais recentemente, John Grant tem optado por um percurso a solo com reflexos em "Queen of Denmark" (2010), álbum de estreia tão ou mais elogiado do que os que gravou com o seu antigo grupo cujo sucessor chegou este ano.
"Pale Green Ghosts" volta a tornar difícil, ou mesmo impossível, a separação entre a vida e a obra do cantautor de 44 anos, pois se o registo antecessor partia sobretudo da sua dependência do álcool e da cocaína, entretanto superada, as novas canções derivam do fim de uma relação especialmente marcante e conflituosa. A juntar ao desgosto amoroso está ainda o facto de Grant ter descoberto, em 2011, ser HIV positivo, informação partilhada com o público num concerto dos amigos Hercules & Love Affair e motor do tom mais grave e meditativo de alguns temas do disco, em especial aqueles que olham de frente para a homossexualidade (já abordada no álbum de estreia) e para a falta de pontaria do cantautor para relacionamentos (assumida em boa parte do alinhamento).
Um disco tão confessional, assombrado pela frustração, depressão e até pelo suicídio, correria o sério risco de se tornar tremendamente desconfortável ou até insuportável, mas "Pale Green Ghosts" não chega a tanto. Em geral está até muito longe disso, por um lado porque Grant quase nunca abdica de algum humor (mesmo que auto-depreciativo) para trabalhar estes retratos, afastando-os das lamúrias auto-indulgentes de muitos cantautores, por outro porque a carga eletrónica de muitos momentos, uma novidade na sua obra, traz outras possibilidades rítmicas e cenográficas - e concede uma certa leveza à moldura de canções emocionalmente carregadas.
Videoclip de "Pale Green Ghosts":
Sem rejeitar por completo a folk elegante e contemplativa de "Queen of Denmark", "Pale Green Ghosts" conjuga esses ambientes com texturas mais versáteis e inesperadas. As companhias voltam a ajudar: depois de na estreia se ter feito acompanhar pelos conterrâneos Midlake, agora Grant recorreu a Birgir Þórarinsson, dos islandeses Gus Gus (o álbum foi, aliás, gravado em Reiquiavique), responsável pelo facto de a synth pop ir ganhando terreno ao soft rock. Entre as participações especiais (e surpresas) conta-se ainda Sinéad O'Connor, convidada para segunda voz de temas como "Why Don't You Love Me Anymore?", mistura épica de dúvida e claustrofobia que aproveita todo o potencial dos sintetizadores num dos episódios mais negros, dolorosos e memoráveis do disco (e já agora, do ano).
Os melhores momentos de "Pale Green Ghosts" encontram-se, de resto, quando Grant decide explorar mais a eletrónica, caso da nebulosa faixa-título, com um suspense cimentado pela euforia orquestral dos últimos minutos - condimentos de um primeiro single atípico que não enganou. "Sensitive New Age Guy", o tema mais dançável, não destoaria na discografia dos LCD Soundystem (apesar de se centrar num amigo transexual e suicida de Grant) e é o tipo de canção impensável no álbum anterior. Em "Ernest Borgnine", com uma atmosfera hipnótica rasgada por um saxofone impulsivo, Grant tenta meter-se na pele do ator norte-americano que dá nome ao título da canção ao lidar com a doença recém-descoberta ("Dad keeps looking at me says I got the disease/ 'Now what did you expect? You spent your life on your knees' (...) I wonder what Ernest Borgnine would do"). O tema é também um dos vários do disco com referências à cultura pop, sobretudo cinéfila, já que ao longo do alinhamento há menções a Woody Allen, Richard Burton ou Salvador Dali.
Videoclip de "GMF":
Até hoje conhecido pela sua voz de barítono, aqui e ali a fazer lembrar a de Neil Tennant, dos Divine Comedy, e por canções de arranjos aprumados na linha de alguns discos de Rufus Wainwright, John Grant nomeia agora referências como os Depeche Mode ou a obra a solo de Marc Almond (vocalista dos Soft Cell) entre as pistas para as sonoridades de "Pale Green Ghosts". "You Don't Have To", canção movida por uma sóbria pulsão dançável, é das que fazem a ponte entre o passado e o presente (e futuro?), num híbrido eletroacústico de texturas plácidas e palavras amarguradas. O ex-namorado do cantautor não fica, como em tantos outros momentos, especialmente bem no retrato conjugal ("Remember how we used to fuck all night long/ Neither do I because I always passed out/ I needed lots of the booze/ To handle the pain"), mas admita-se que Grant também não tenta fazer-se passar por santo - em "GMF", por exemplo, está mesmo muito longe disso e é tão pragmático a apontar o dedo a si próprio como a terceiros ("But I am the greatest motherfucker/ That you're ever gonna meet/ From the top of my head/ Down to the tips of the toes on my feet").
Brutalmente honesto, apesar de cantar, muitas vezes, com toda a calma e candura do mundo, o ex-mentor dos The Czars sabe aproveitar más experiências enquanto matéria-prima de boas canções, simultaneamente idiossincráticas e empáticas. Nem tudo funciona - a rispidez techno de "Blackbelt" chega a cansar, "Glacier" é uma despedida desnecessariamente esticada, embora bonita no seu otimismo -, mas deslizes pontuais são mais do que compreensíveis num disco tão arriscado. Os fantasmas pessoais que se cuidem: a jornada criativa e emocionail de "Pale Green Ghosts" mostra que John Grant está disposto a enfrentá-los.
@Gonçalo Sá
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