Há pouco mais de dez anos, os Hidden Cameras enquadravam-se entre os nomes que deram novo fôlego (e visibilidade) ao rock canadiano de contornos indie. O núcleo, do qual os Arcade Fire se tornariam no nome mais sonante e que incluía também revelações como Owen Pallett/Final Fantasy, Broken Social Scene, Wolf Parade, Stars ou Metric, teve no projeto de Joel Gibb uma das vozes mais curiosas, mesmo que nunca tenha sido especialmente emblemática.
O cantautor descrevia então o coletivo como praticante de "gay church folk music", rótulo de que a música dos Hidden Cameras nunca se conseguiu afastar ao longo de uma sucessão de discos. "Age", o mais recente, não é exceção, por muito que Gibb tenha salientado, numa entrevista recente ao Toronto Star, que a banda evoluiu e cresceu entretanto. E há, de facto, mudanças evidentes no sexto álbum do projeto de Toronto - agora também com um pé em Berlim, cidade adotada pelo seu mentor. Onde há uns anos encontrávamos um grupo orgulhosamente militante na defesa dos direitos da comunidade LGBT (não só mas sobretudo), os Hidden Cameras de 2014 são liderados por um vocalista um pouco menos desbocado, que não se atira de cabeça à controvérsia alimentada por videoclips e em especial pelas letras das canções, agora menos explícitas.
Videoclip de "Year of the Spawn":
Gibb não deixou propriamente de ser um agente provocador, mas foi dando mais espaço à subversão do que a uma irreverência por vezes ostensiva. Sinais de um crescimento/amadurecimento documentado em "Age"? Talvez, mas não faz do disco um registo conformista, longe disso. Bradley Manning, o ex-soldado norte-americano condenado a 35 anos pela maior fuga de informação de sempre (sobre as guerras do Afeganistão e do Iraque) através da Wikileaks, foi um dos pontos de partida para o novo conjunto de canções. Hoje conhecido como Chelsea Manning, após iniciar uma terapia de mudança de sexo, o antigo analista de inteligência do exército é encarado por Gibb como uma figura de referência transgénero e símbolo da luta pela liberdade que a idade adulta pode potenciar.
A inspiração foi forte ao ponto de o livrete de "Age" incluir uma foto de Manning, embora o alinhamento não revele sinais muito óbvios da sua presença. Não há referências diretas à sua figura ou percurso, mas o espírito de denúncia tem eco em canções como "Gay Goth Scene", single contra a homofobia acompanhado de um videoclip centrado no bullying. As imagens da letra já seriam fortes por si só ("We don’t want no gay goth scene in this house/ We don’t want no gorgeous teen in your mouth") e integram uma das melhores canções do disco, ótimo exemplo da eloquência e grandiosidade dos Hidden Cameras - e quando o desvario de violinos e percussão acolhe a voz convidada (e visceral) de Mary Margaret O'Hara, perto do final, o efeito torna-se ainda mais tenso e perturbante.
Videoclip de "Gay Goth Scene":
Se este primeiro avanço sugeria um álbum épico e esfuziante, "Age" acaba por se mostrar diversificado nos cenários, apesar de só contar com oito faixas. Felizmente, é dos casos em que menos é mais, porque nenhuma canção nos obriga a passar à frente. O alinhamento pode não ser tão coerente como os de discos anteriores dos Hidden Cameras, mas vale a pena ouvi-los arriscar novos territórios. O reforço da eletrónica, já ensaiado, toma conta de boa parte dos temas, com destaque para uma viciante "Carpe Jugular", a milhas da pop de câmara a que nos habituaram - em vez de Sufjan Stevens ou Patrick Wolf, os vizinhos mais próximos parecem ser os Soft Cell ou Human League de há três décadas, pelo flirt entre synth pop e italo disco apontado à pista de dança.
"Afterparty", mais arrastada e menos imediata, volta a baralhar as coordenadas ao se insinuar por um dub dopado, acompanhamento ideal para (des)encontros noturnos em que Gibb tem de lidar com a solidão depois da festa ("It's all there is/ The pressure.../ The pleasure...). Sons de garrafas partidas ajudam a compor um cenário distante da fanfarra dos Hidden Cameras mais expectáveis, mas nem por isso menos teatral. Quem tiver saudades dos arranjos de cordas sumptuosos pode contar com "Skin & Leather", crónica de uma experiência S&M, ou a mais minimalista "Bread for Brat", assente num jogo de aliterações e num violino cortante. A existencial "Doom" fica algures entre a banda de ontem e de hoje, em registo amargurado q.b., e a breve "Ordinary Over You" é talvez o momento mais sereno e uplifting. A alternar entre o plácido e o barroco - com vantagem para a segunda vertente -, "Year Of The Spawn" fecha o disco em modo apoteótico, com o piano de Chilly Gonzales a tentar amparar os gritos de Gibb e a fúria das cordas.
Mais de uma década depois da estreia, "Age" prova que ainda podemos contar com os Hidden Cameras quando o assunto é pop inventiva e transgressora, mesmo que não mantenha a extravagância dos primeiros tempos. E também podemos contar com um sucessor para breve, espécie de compensação para estes cinco anos sem novidades: Gibb garante que tem outro disco terminado, mais tradicional e acústico, saído da mesma safra. Para já, "Age" é uma bela banda sonora para o compasso de espera...
@Gonçalo Sá
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