“A primeira ideia era que fosse um disco de canções de ninar”, contou Adriana Calcanhotto à imprensa brasileira, salientando que o objetivo passava pela simplicidade, através do uso único e exclusivo de três guitarras. No entanto, este novo trabalho é bem mais que isso: com desentupidores de pia, maracas, coquinhos, sininhos e lixa de madeira aliada às guitarras, piano, flautas, baixo e sintetizadores, ‘Tlês’ catapulta o ouvinte para um universo único.
Do ‘Taj Mahal’ ao fundo do mar, passando pela floresta e acabando no quentinho dos lençóis, ‘Tlês’ é como viver um sonho preenchido de várias pequenas histórias, sonoridades e mensagens. Fazer um disco para crianças não é reduzir-se à infantilidade e Partipim faz prova disso aqui mais uma vez. Da origem das coisas, à consciência ambiental, ao racismo, fazendo paralelamente um périplo sobre a cultura musical brasileira, este disco é um trabalho de grande qualidade que faz jus à carreira desta incontornável artista do MPB.
Com 11 faixas, Partipim recupera neste trabalho as músicas de sempre, colocando lado-a-lado temas como ‘O Pato’, já consagrado na voz de João Gilberto, e composições originais de igual qualidade como ‘Porque os peixes falam francês’, repleto de gatilhos para a imaginação protagonizados por sintetizadores e, espante-se, por um desentupidor de pia num prato com água. Este é um dos momentos altos do disco.
A criatividade é a palavra-chave para submergir no universo de Partimpim e tudo começa com ‘Salada Russa’, onde se descobre que “o queijo de Parma vem de Minas/a vagem francesa de Campinas/cuscuz marroquino de Ipanema/ e o pão italiano ali da esquina”.
O piano, o baixo e as guitarras que dominam este primeiro tema cedem lugar aos sintetizadores e sininhos em ‘Taj Mahal’, a segunda música do disco, lançando o ouvinte para um ambiente futurista onde, no entanto, se promete contar uma história de amor antiga, com contornos de “mil e uma noites”. Assim que se aguça a curiosidade do ouvinte o segredo guardado no refrão é substituído por com compassado conjunto de “dê dê dê”, deixando em aberto, sujeito ao imaginário de cada um, os contornos desta narrativa:
‘Lindo lago de amor’, o terceiro tema de ‘Tlês’, cria uma atmosfera de fábula, mais tarde recuperada em ‘Porque os peixes falam francês’, onde os sons despertam a curiosidade e a letra aparentemente sem sentido faz crer que se “entrou de cabeça” na mente de uma criança.
Os primeiros acordes de ‘O Pato’ denunciam a chegada de um sambinha que dá comichão no pé. O baixo, a lixa de madeira, a guitarra e o estranho piston cretino são os instrumentos que dão cor à história de um quarteto de animais que decidiu ensaiar à beira de um lago, acabando por cair enquanto “afinavam” o vocal.
‘Criança Crionça’ dá conta de uma onça comilona que testa a paciência dos restantes animas da floresta e que, por fim, se rende à paixão pela dança. Se o imaginário aqui patente é um desafio para o enquadramento mental de qualquer adulto, as dificuldades estendem-se ao nível da letra, pois dificilmente se verá a cantar “Jabuti teiu/tucano tatu/macaco sagui/preguiça preá/cutia quati/não tinham descanço”. Aviso à navegação: ‘Tlês’ é definitivamente um disco para crianças, para entrar é preciso desconstruir, tornar simples e isso, por si só, já é um grande desafio para os mais “crescidos”.
‘Passaredo’ dá inicio a um passeio pela floresta que se pretendia divertido. Mas a chegada do “Homem” cria uma inesperada inversão nos acontecimentos e de repente estamos a enxotar os pássaros da floresta para os salvar ao som das guitarra, do piano e flautas. Pouco mais de dois minutos bastam para fazer passar a mensagem: a responsabilidade ambiental começa desde cedo e está nas mãos de cada uma fazer o que pode para preservar o ambiente.
Com ‘De onde vem o baião’ retomamos o périplo pela música popular brasileira, reavendo aqui a sonoridade animada que marcou ‘O Pato’. As palmas, o coquinho e o pandeiro marcam o ritmo e convidam a uma novo pezinho de dança.
‘Tia Nastácia’ conta a história de “senhorzinho” branco em busca do colo na negra Tia Nastácia que conta “estórias para ninar”. Esta música fez inicialmente parte da série “O sítio do pica-pau amarelo”, em 1977, e encontramo-la agora aqui, marcando o fim de uma grande viagem, e voltando a um tema recorrente: o racismo.
Em seguida, e como não podia deixar de ser, Partipim termina mesmo o disco com duas “músicas de ninar”. ‘Também você’ manda meninos e monstros para a cama, com dois conselhos tão úteis para miúdos como para graúdos: “Nunca dizer nunca/cair levantar/ver com olhos novos/se maravilhar”.
E depois deste convite a olhar a vida com a simplicidade de uma criança, Adriana finda ‘Tlês’ com ‘Acalanto’, uma música de Dorival Caymmi.
Não há porque recear o fim desta viagem ao universo de Partimpim. O recomeço está à distância de um “play” e a promessa é de uma viagem melhor do que a anterior porque há muito ainda para explorar em ‘Tlês’, um disco que não se esgota à primeira audição e reafirma, sem surpresa, Adriana Calcanhoto como uma perita neste ofício de fazer boa música.
@Inês Alves
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