
“’Os Dias da Liberdade’ são os dias que vivi no pós 25 de Abril de 1974”, disse o fadista em entrevista à agência Lusa, alertando para o recrudescimento do racismo, da xenofobia, da homofobia e de "tudo e mais alguma coisa" que se oponha à liberdade, esse "rio de onde partem os outros afluentes" que garantem os direitos humanos, o respeito pelo próximo, a solidariedade.
Hélder Moutinho disse que não viveu o tempo anterior à Revolução dos Cravos, “mas após o 25 de Abril, tivemos 20 anos de uma liberdade fantástica, em que valores como a solidariedade, a liberdade de expressão, a luta contra o racismo e a homofobia estiveram à flor da pele, a fervilhar", valores que, "com o correr do tempo, começaram a amainar, e estamos a perder essa consciência”.
"Estamos a perder o sentido da liberdade", alertou Hélder Moutinho. "O racismo voltou novamente. Podíamos ser o país da Europa com menos racismo, mas infelizmente as coisas estão complicadas, estamos a ser vítimas de problemas como a xenofobia, homofobia, tudo e mais alguma coisa”.
“Muitos dos textos do João Monge são sobre a minha adolescência que eu chamo ‘os dias da liberdade’”, argumentou.
O álbum “Os Dias da Liberdade” é publicado esta sexta-feira. Dos 16 temas, cinco são fados tradicionais, três outros são melodias recuperadas do álbum anterior. Na melodia de “Minh’Alma de Amor Sedenta”, de António dos Santos, Moutinho canta “Estrela Mãe”. O novo álbum conta ainda com composições de João Gil, Manuel Paulo, Mário Laginha, Pedro de Castro, Pedro Silva Martins, mais um tema de origem popular.
A gravação de todos e cada um destes temas foi feita em diferentes ambientes, entre estúdio, casas tradicionais de fado, como Maria da Mouraria e Tasca da Bela, e a discoteca Lux Frágil.
“Achámos interessante experimentar as acústicas diferentes dos espaços, não gravar o disco da forma convencional – gravar primeiro os instrumentos e depois a voz. Foi um bocado voltar à história e gravar o ‘disco à uma’. Eu quis fazer um disco em que as pessoas vissem a autenticidade e percebessem a orgânica", um disco "que fosse gravado com espontaneidade”.
“Também há dois ou três temas gravados em estúdio, como se faz hoje habitualmente, com a voz separadamente, etc.”, acrescentou.
Questionado sobre o título do álbum, Hélder Moutinho disse que a poesia de João Monge “tem muito a ver com a luta pela liberdade, pelos Direitos Humanos, contra a homofobia, contra a xenofobia e o racismo, na defesa da solidariedade". "Mesmo falando de amor, há sempre metáforas no meio disto de tudo”.
O intérprete citou “Prenda Rara”, composta a partir do tema popular “Rosa Tirana”, cuja “letra fala sobre a solidariedade e o respeito pelo próximo, sobre aquilo que nós somos". "O povo português é muito solidário”, acrescentou.
“Acho que a Liberdade é o rio principal de onde partem os outros afluentes, que são os Direitos Humanos, a solidariedade, a luta contra a xenofobia, o racismo, a homofobia”.
O fadista chamou à atenção para o tema “Amor sem Lugar”, com música de Mário Laginha, que conta uma história de amor vivida antes do 25 de Abril de 1974: um casal que decide casar, mesmo sabendo ele que ia ser preso pela polícia política da ditadura do Estado Novo. Mas desta forma “consumava o seu amor e ela podia ir visitá-lo à prisão”.
“Esta é uma história de amor num contexto geral de opressão, de ditadura”, sublinhou.
Hélder Moutinho cita igualmente “Atrás dos cortinados”, musicado por João Gil, tema que “fala sobre a homofobia e as condições sociais”.
“No fundo, a poesia do João Monge está muito ligada à luta pela preservação de todos estes valores que nós ganhámos", disse Hélder Moutinho à Lusa. "No fundo, de alguma forma, remeteu-me para a minha adolescência. Os dias da liberdade são os dias que eu vivi no pós 25 de Abril”.
Esta não é a primeira vez que Hélder Moutinho, a fazer 30 anos de carreira, canta poemas de João Monge. "É um poeta fantástico, e agradeço-lhe por ser quem é, o que representa na história da música portuguesa, e o ter parado durante quase um ano, só para escrever para mim”.
Além de fadista Hélder Moutinho é também poeta, cantado por vários outros intérpretes. Mas reconhece que no seu repertório não é de sua autoria a maioria dos temas que canta.
“Houve vários desafios, e acabei por me esquecer de escrever para mim. Mas tenho a certeza de que, num futuro próximo, vou voltar a cantar as minhas próprias coisas”, disse o fadista reconhecendo o desafio que é para si interpretar as palavras escritas por outros.
“Além de ler a minha poesia, ler a dos outros. Sentir que vem uma letra do lado de lá, que vem com uma mensagem, e que a canto como fosse minha. Também gosto deste desafio”.
A escolha dos compositores foi um “acerto” entre Hélder Moutinho e João Monge. Alguns já tinham escrito para o álbum anterior. Três melodias foram recuperadas desse álbum: a de Mário Laginha, para “Amor sem Lugar”, a de José Medeiros, para “Dança dos Peixes”, e uma de Marco Oliveira, “Garota da Mouraria”, “que era como se fosse uma balada". Agora, "ficou com outro balanço, e foi transformada num género de marcha”.
Sobre a escolha da melodia de António dos Santos, “Minh’Alma de Amor Sedenta”, o fadista afirmou que gosta muito de a cantar. Costumava cantá-la com a letra de Mascarenhas Barreto, que não é de sua criação, mas queria abordá-la com uma outra letra. Assim, pediu a João Monge, que escreveu “Estrela Mãe”.
Para o fadista esta é “das melodias mais interessantes em termos interpretativos", pois "permite entrar mesmo no fundo, cantar baixinho, quase a segredar". "Funciona mesmo como interpretação. Não tem nada a ver com a voz, é puxar as pessoas para o seu mais íntimo”.
Quanto ao tema “Já Pedi Contas à Vida”, foi gravado em cinco melodias tradicionais de fado para quintilhas, como o fado Seixal, o Bailado, o Pedro Rodrigues. Em equipa, foi escolhido o Fado Tango, de Joaquim Campos.
Outras melodias dos fados tradicionais presentes no álbum são o Fado Pajem, de Alfredo Marceneiro, no “Fado Herança”, o Fado Alberto, de Miguel Ramos, em “Não Posso”, o Fado Corrido (popular), em “Vielas da Vida”, e Versículo, de também de Marceneiro, para “Nem Sempre a Saudade me Entristece”, a que o fadista se referiu como “versículo imperfeito”, pois teve de o adaptar a métrica poética.
Hélder Moutinho é acompanhado neste álbum pelos músicos Pedro de Castro e Ricardo Parreira, na guitarra portuguesa, que o acompanham há cerca de 20 anos, Miguel Silva, João Filipe, Ivan Cardoso, e André Ramos, na viola, Ciro Bertini, Francisco Gaspar e Fernando Araújo, na viola baixo, e Gabriel Godoi, no violão de sete cordas.
O álbum é apresentado ao vivo no próximo dia 23 de abril, no grande auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
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