Há momentos do passado que nunca devem deixar de ser revisitados e os seus crimes hediondos nunca devem ser esquecidos. Também há diferentes formas de o fazer – e o autor brasileiro Julián Fuchs faz isso um misto de memórias familiares, visitas a locais do presente, reflexões nos limites da poesia e uma técnica não-linear que constrói um quebra-cabeças que entrelaça o micro (a família) e o macro (o país) num todo coerente.
Os anos de 1976 a 1983 conheceram um dos momentos mais sujos da história da América do Sul, onde uma junta militar governou a Argentina promovendo o que (mesmo que as ditaduras pertençam todas ao ponto mais baixo da moralidade) surpreendeu pela violência com que atacou a sua própria população. O chamado “terrorismo de Estado” sumariamente torturou e assassinou milhares de pessoas – muitas das quais simplesmente desapareceram.
Anos depois, muitos foram julgados (o filme “Argentina, 1985”, que esteve nos Óscares deste ano, aborda o tema) e condenados por crimes contra a humanidade - foram perdoados pela simpático presidente Carlos Menem quatro anos depois, embora novamente condenados em 2000.
Uma prática muito particular desta época foi o roubo de bebés e as Mães e Avós de Maio deram a conhecer ao mundo mais um dos capítulos sórdidos dessa história. Um destes bebés bem pode ser o irmão adotivo do autor, sugere uma espécie de investigação que inicia esta história. Mas esta não se prende com a procura literal da identidade do irmão, antes com o facto simbólico de que, ao crescer, este torna-se cada vez mais esquivo ao convívio com a própria família - que não consegue chegar até ele.
Talvez mais elucidativa e satisfatória seja a reconstrução que o autor acaba por fazer da história dos próprios pais - entre a intelectualidade própria de dois psicanalistas, a militância política de esquerda e a fuga dolorosa de tudo aquilo que representava a sua “vida”. Fuga justa e necessária de um inimigo hediondo que se aproximava (o consultório do pai de cabeça para o ar, o diretor do hospital torturado), mas que nunca deixa de incluir alguma culpa.
O Mundial da infâmia e a “pátria sem caráter”
Num dos momentos mais belos e comoventes, Fuks descreve o dia em que os pais, já a viver em São Paulo, recebem os amigos brasileiros para verem o jogo de futebol entre Argentina e Peru no Mundial de 1978 - partida que entraria para a história da infâmia no desporto numa competição já por si infame por ter sido, com a conveniência da Fifa, patrocinado pela tenebrosa Junta Militar.
Neste jogo, a seleção da casa precisava de vencer por 4x0, o que, miraculosamente, vem a acontecer através de lances mais do que suspeitos (hoje em dia alguns já confessaram o suborno) pelos jogadores peruanos.
Descreve Fuks: “Mas houve um dia em que tampouco os brasileiros souberam sorrir (...) o dia em que a simpatia habitual deu lugar à mais conspícua raiva. (...) Numa incrível goleada da Argentina sobre o Peru (...) era o Brasil que se via eliminado, ainda que invicto, ainda que não merecesse tamanho azar. Ou não era de azar que se tratava? Reunidos todos numa mesma casa, exilados argentinos e brasileiros solidários, agora todos se entreolhavam com desconfiança, escondiam mal a agressividade… Súbito os onze homens em campo eram dignos representantes de uma pátria sem caráter, de um país indigno, aquele jogo era uma fraude, uma sujeira, o goleiro estava comprado e cada um dos argentinos ali presentes estava estranhamente envolvido, tinha seu quinhão de responsabilidade…”
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