"Eu sinto que o Mário é uma espécie de lenda escondida, que ninguém conhece, mas quando se olha para o seu trabalho, vê-se o quão lindo e bem feito é", conta à agência Lusa o responsável pela editora Time Capsule, Kay Suzuki.
A compilação, intitulada "Stories From Another Time 1982-1988", centra-se nos três discos gravados por Mário Rui Silva em Angola nos anos 1980: "Sung'Ali" (1982), "Tunapenda Afrika" (1985) and "Koizas dum Outru Tempu" (1988).
A edição procura documentar a viagem do músico até ao âmago da música tradicional angolana, ao mesmo tempo que a cruza com linguagens do jazz, instrumentação clássica ou ritmos de vários pontos da África Ocidental.
A música "surge de um instinto coletivo de afirmar uma identidade angolana cosmopolita, livre das ideias paternalistas do lusotropicalismo", explica a editora.
"Havia uma necessidade dentro de mim de contribuir para fazer coisas novas", afirma o artista, citado pela editora nas notas do disco.
Com a guitarra no centro, como de resto sempre tem estado na carreira de Mário Rui Silva, as músicas refletem também o trabalho meticuloso do artista enquanto estudioso da cultura do seu país, seja do semba enquanto linguagem musical, seja da língua, como é exemplo a edição de um ensaio seu para uma gramática comparativa entre o quimbundu e o português.
Nascido em Luanda em 1953, Mário Rui Silva foi discípulo de Liceu Vieira Dias, considerado um dos "pais" da música popular angolana e cofundador do N'Gola Ritmos, grupo musical que assumiu na música uma forma de resistência ao colonialismo português.
Foi a partir dos ensinamentos de Liceu Vieira Dias que Mário Rui Silva "ganhou uma compreensão técnica, política e espiritual da cultura musical de Angola", nota a editora Time Capsule.
"É um músico muito humilde, mas que, tecnicamente, o que faz com a guitarra é impressionante e depois as mensagens que transmite nas canções quase que gravitam na tradição do blues", salienta Kay Suzuki.
Para além de uma guitarra muito trabalhada e uma certa melancolia nas músicas, há também todo um trabalho de percussão que deixou a editora londrina rendida.
"A percussão é toda ela muito precisa" e, apesar de ser ritmicamente "complexa", parece ser feita "sem esforço", notou.
As músicas cruzam também diversas influências da África Ocidental, contando até com a integração de uma kora, construída pelo próprio Mário Rui Silva, sublinhou.
"Ele está muito interessado na harmonia e dá para ver nos álbuns a sua compreensão da harmonia, que se expressa de forma ainda mais abrangente com a interação da guitarra com o saxofone e o piano nos anos 1980", referiu Kay Suzuki.
A compilação surgiu depois de um dos curadores do disco, Sam Jacob, ter descoberto o álbum "Koizas dum Outru Tempu" numa loja em Londres.
"Quando o tocou numa festa, toda a gente saltou para a cabine para ver que disco era", recorda Kay.
Os dois acabaram por ir à procura da restante obra de Mário Rui Silva, contactaram o artista e decidiram avançar com a edição.
"O conceito da editora é de que toda a música tem uma boa história por trás e pode captar-se esse momento, como numa cápsula do tempo. Este álbum é muito experimental, parece que não tem quase fronteiras, que ele estava a fazer uma viagem por ele próprio, mas centra-se neste estudo do semba, das suas raízes", aclarou.
Apesar de não ter tido um "grande impacto em Angola ou em Portugal, é um artista impressionante", cuja história "merece ser contada", frisou.
A edição, num vinil duplo, será lançada a 25 de junho, com distribuição mundial, podendo ser reservada a partir da plataforma Bandcamp.
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