Em entrevista à agência Lusa, o investigador de 30 anos disse que, "se formos sérios, não podemos ter a pretensão de fazer uma biografia verdadeira de Camões, porque não temos elementos que nos permitam fazer isso, o que temos são coisas muito esparsas”. Assim, “não há uma biografia de Luís de Camões [1524-1580]”, embora a investigação dê os primeiros frutos.

Para Carlos Maria Bobone, não se deve tanto recorrer aos poemas de Camões para chegar a factos, pois há o risco de se perder "o seu verdadeiro significado, mais universal ou mais relacionado com sentimentos, paixões, modos de ver o mundo", passando "a ser vistos como uma chave para [a sua] vida, um código secreto, para aquilo que Camões andava a fazer".

Desse modo, alerta, "perdem-se os poemas e a vida ganha um sentido equívoco, porque estamos a atribuir um valor biográfico a coisas que não sabemos se o têm”.

O investigador reconhece que “é uma maneira muito tentadora” recorrer à lírica, “pois não temos mais nada para estudar a vida de Camões, mas é uma maneira de olhar para a vida e para os poemas que os compromete completamente”.

Bobone defendeu que se deve “estudar Camões de uma maneira mais ou menos alargada”, tendo em conta os códigos da sua época.

"Sem esse trabalho, ler Camões pode tornar-se um duplo equívoco, ou porque olhamos para a sua poesia através de uma vida inexistente, ou porque olhamos para a sua vida a partir de interpretações equívocas da sua poesia".

O que “Camões, vida e obra” procura é assim "olhar para a 'Lírica' e para 'Os Lusíadas' a partir de um ângulo muito mais amplo, que toca a política, a filosofia, o exame do caráter e a própria ideia de poesia", como se lê na apresentação do livro.

O autor disse à Lusa que “há um modo de olhar para o mundo, de perceber aquilo que nos rodeia, que no século XVI é dado por certos códigos e certas maneiras de escrever. E, se calhar, nós já os perdemos, por isso é que se torna importante estudar Camões de uma maneira alargada”.

“Sem perceber esses códigos podemos não compreender o que Camões nos quer dizer”, sublinhou.

Na prática, trata-se de perceber "as suas peculiaridades" para perceber "melhor a universalidade e a dimensão do génio de Camões".

O livro “Camões, vida e obra” é apresentado pelo poeta Fernando Pinto do Amaral, no dia 10 de junho - Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades -, às 18h30, na Feira do Livro de Lisboa, na Praça LeYa, com a presença do autor e moderação do jornalista e escritor João Céu e Silva.

Bobone disse que o livro não foi projetado para sair quando se completa o 500.º aniversário de Luís de Camões e “estava em preparação há muito tempo”, até porque esta data “é um bocadinho artificial”.

A escolha de Camões foi “por gostar” do poeta.

Os documentos sobre Luíz de Camões rareiam, desconhecendo-se com certeza absoluta onde e quando nasceu. O ano de 1524 é o mais apontado para o seu nascimento, possivelmente em Lisboa, mas há autores que admitem a possibilidade de ter nascido em Coimbra, onde estudou na universidade ou no Mosteiro de Santa Cruz.

Sobre o autor de “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, Bobone disse que, no seu tempo, “não terá sido propriamente um desconhecido, e isso é uma das coisas interessantes quando se estuda a sua vida, mais do que qualquer outra coisa".

"A relação do Camões com os seus contemporâneos é meio misteriosa”, prossegue o autor de “Camões, vida e obra”. "Encontrarem-se alguns indícios de uma certa fama do Camões, por causa de poemas que escreveu, dedicatórias, etc., relacionando-se com pessoas importantes do seu tempo. Mas há coisas admiráveis e um exemplo muito óbvio é relativamente a Diogo do Couto”, historiador que viveu entre 1542 e 1616, autor de “Diálogo do Soldado Prático”.

“Diogo do Couto diz que é amigo do Camões, escreveu 'éne' narrativas sobre batalhas na Índia, onde Camões devia ter entrado, mas nunca se refere a ele”, afirma.

Esta situação documental cria “um vazio que não nos permite dizer com certeza que Camões era um poeta ignorado, mas também não nos permite ter dele a imagem de um poeta reconhecido, e isso é fascinante porque acaba por ser difícil situar Camões no seu tempo”.

Os documentos que se encontram da época do poeta “são muito poucos e quase sempre burocráticos, a maior poeta diz respeito à morte e à tença que lhe foi conferida” pelo rei Sebastião, e há ainda as “várias anedotas” dos séculos XVI e XVII.

Uma geração posterior de autores reconheceu-lhe o talento e o valor.

“Uma segunda geração de poetas, por exemplo, [Fernão Rodrigues Lobo] Soropita”, que foi o prefaciador e organizador da primeira edição das "Rhythmas" de Camões, em 1595, “empenhou-se em preservar a memória de Camões”.

“Camões sobrevive porque apesar de não termos muitos testemunhos sobre ele, durante a sua vida, a verdade é que a partir do momento em que se publicam ‘Os Lusíadas’ [em 1572], é reconhecido como um grande poeta e, retrospetivamente, começam-se a procurar coisas [sobre a sua biografia], e há até um anedotário por causa disso”.

Questionado pela Lusa sobre se o cariz patriótico de “Os Lusíadas” impulsionou o reconhecimento do poeta no período em que perdeu a ondependência, entre 1580 e 1640, Carlos Maria Bobone disse que “por um lado sim, por outro não”.

“Um livro como ‘Os Lusíadas’ podia acender ânimos nacionalistas e patrióticos e é normal que isso tenha acontecido, mas, ao mesmo tempo, Camões é logo reconhecido por toda a Espanha como um grande poeta. Refira-se que é numa altura em que o bilinguismo literário [Português/Castelhano] é muito grande” e cultivado.

“Há mesmo da parte dos poetas espanhóis, e de um modo de pensar associado a uma ideia mais geral de Espanha, um reconhecimento grande de Camões. Não é só por ser português, num tempo de perda da independência, mas porque de facto é logo visto como um grande poeta”.

O escritor castelhano Miguel de Cervantes referiu-se a Camões como um grande poeta, e uma edição de “Os Lusíadas”, saída no reinado de Filipe III de Portugal, refere-se ao escritor português como “Príncipe dos Poetas Espanhóis”, “o que se tornou um epíteto” do poeta, autor de outras obras, como da peça de teatro “El-Rei Seleuco” (1545).

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa, alfarrabista e editor-principal da revista Crítica XXI.

Antes publicou “A Religião dos Livros – Alfarrabistas, Livrarias e Livreiros” e “Monarquia – História, Doutrinas e Heranças”, também pelas Publicações D. Quixote.

Sobre Camões, a editora Contraponto do Grupo Bertrand/Círculo também anunciou para o próximo dia 20 a publicação de "Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões", por Isabel Rio Novo.