Imagine um mundo sem arte, sem cultura. Como seria a sua vida sem música? Sem poesia? Sem pintura? Sem literatura? Sem cinema? Não haveria memória daquela canção que marcou o verão de há 10 anos; não citaríamos poetas e autores em legendas no Instagram; não ficaríamos três horas em frente a um grande ecrã; não aplaudiríamos, todos juntos, uma peça (...) E tanto mais. A cultura e a arte estão presentes nas mais pequenas e nas maiores coisas da vida, como defendem vários autores. E, em tempos de pandemia, o setor da cultura e da arte foi o primeiro a parar, sem nunca chegar realmente a parar.
Espectáculos, exposições e eventos culturais no geral foram dos primeiros a ser afetados pela pandemia da COVID-19. Da música aos livros, passando pelo teatro ou exposições, milhares de artistas e de profissionais da área viram os seus eventos a serem cancelados ou adiados e as vendas a cair - no início de abril, a Associação de Promotores e Espetáculos, Festivais e Eventos (APEFE) revelou que mais de 24800 espetáculos foram cancelados, adiados ou suspensos em Portugal por causa das medidas de contenção da epidemia da COVID-19.
Para a APEFE, os números materializam "uma crise sem precedentes no mercado da cultura em Portugal” e um “problema gravíssimo de subsistência e sobrevivência a milhares de pessoas e empresas". "Todas as empresas e profissionais ligados à cultura", sublinha a associação, "apresentam uma quebra de 100% na sua faturação, no seu rendimento e estão proibidos de exercer a sua atividade".
"Estamos num momento único na vida de todos. A cultura foi a primeira a ser parada e será provavelmente a última a poder retomar a sua atividade. Cancelar a cultura de um país é cancelar a sua memória, a sua alma, a sua identidade. Cancelar a cultura é matar a esperança", frisaram vários artistas, técnicos e produtores num vídeo do movimento "Adiem-nos mas não nos cancelem agora".
As salas de espetáculo fecharam, os concertos foram adiados ou cancelados, as livrarias ainda não abriram portas e as exposições estão encerradas, assim como os museus e monumentos. O setor pode ter sido o primeiro a ser afetado pela COVID-19, mas também foi o primeiro a reagir e, por isso, a cultura e a arte nunca entraram em quarentena, só se adaptaram a uma nova realidade.
Com milhões e milhões de pessoas por todo o mundo fechadas em casa, a arte e a cultura chegam-nos através das plataformas digitais - os músicos dão concertos em direto; os escritores conversam com os seus leitores; há declamação de poesia no Facebook e festivais no Instagram; os teatros partilham as gravações das suas peças; as estreias de cinema adaptam-se à nova realidade; e a lista podia continuar.
"O entretenimento é diferente da arte"
O acesso à cultura e à arte está facilitado e à distância de um clique. Mas a procura dos públicos é diluída entre a arte e o entretenimento. Para Pedro Abrunhosa, "na realidade, o entretenimento não é uma necessidade vital": "Existem duas coisas: uma delas é desligar do mundo por razões de entretenimento - o entretenimento é diferente da arte, são coisas muito diferentes. O entretenimento é para passar o tempo, é para distrair e não leva à profundidade, não leva à introspecção e não é reflexivo".
"Há necessidades vitais, comer, beber e dormir. Por exemplo, a sexualidade já não é uma necessidade vital fundamental porque nós vivemos sem fazer sexo - mas será que vivíamos melhor? Provavelmente não. A arte é o mesmo tipo de necessidade vital: nós não morreríamos sem arte, mas, na realidade, a humanidade provou que sempre que existe humanidade existe uma forma de criação artística. Mas que forma de criação de entretenimento existiria no Neolítico? Provavelmente observar a natureza, é uma forma de passar do tempo e entretenimento é isso, é passar o tempo", frisa o músico em conversa com o SAPO Mag.
"A arte é transcendente, a arte cria um outro tempo, cria um outro lugar. Quando eu estou ao piano a criar, a escrever, de repente passaram oito horas... não porque eu esteja entretido, mas porque estou hipnotizado, estou arrebatado, estou noutro sítio que já não é aquele. Podem passar, às vezes, 10 ou 12 horas, não comi, não dormi e não tive a percepção do tempo. A arte é outra percepção do tempo, o entretenimento não. O entretenimento é: 'olha, já passou uma hora e a vizinha da frente ainda não tirou a roupa'", acrescenta Pedro Abrunhosa.
Ao SAPO Mag, o escritor Richard Zimler é claro: "Acho que a cultura é a nossa salvação, embora seja pouco valorizada pelos governos internacionais porque, nos últimos 10 anos, tudo está focado na economia". "O que seria de Portugal sem Amália Rodrigues, sem Camões, sem Fernando Pessoa, sem José Saramago, sem os cineastas? Podia ser um país, mas não seria Portugal. É a cultura que nos define, é a cultura que é a nossa salvação nestes períodos muito difíceis: a música, a leitura... sentar num sofá e ler um bom romance durante duas horas, pode dar-nos uma tranquilidade muito importante nesta altura. Tenho pena das pessoas que não gostem de livros, que não gostem de música... eu não faço a mais pequena ideia do que elas estão a fazer nesta altura", acrescenta.
"Eu não seria a mesma pessoa sem livros e sem a possibilidade de escrever, mas a música também me marcou muito - sou uma criança dos anos 1960. Seria uma pessoa completamente diferente sem Bob Dylan, sem os Beatles, sem os Stones, sem a Joni Mitchell... são as minhas referências e vão ser sempre as minhas referências", relembra.
Já para Carolina Carvalho, jovem atriz que é uma das protagonistas de "Bem Bom", filme sobre as Doce, a arte e o entretenimento estão sempre presentes nas nossas vidas. "Mas é em períodos como este que as pessoas dão mais valor à arte", defende, acrescentando que "os filmes, as séries" ajudam a entreter.
"É impossível pensar num mundo sem arte. Já numa fase 'normal', se pararmos para pensar, estamos sempre a ouvir música, por exemplo. Nesta fase, ainda mais. De alguma forma temos de nos entreter e não acredito que haja alguém no mundo que não esteja a lidar com algum pedaço de arte para passar o tempo", acrescenta a atriz em conversa com o SAPO Mag.
A criação
Os vários públicos têm consumido arte, cultura e entretenimento em massa durante a quarentena e, em muitos casos, de forma gratuita. E quem faz da criação artística o seu trabalho, como tem vivido estas semanas e meses de confinamento?
Em quarentena há várias semanas, no Porto, Richard Zimler conta ao SAPO Mag como tem ocupado os seus dias. "O que faço em casa é igual todos os dias: acordo e depois do pequeno-almoço faço algumas coisas 'pequenas', como responder a e-mails, fazer um pouco de crochet, preparar biscoitos ou um bolo, vejo um bocadinho dos noticiários da televisão... Isto é novo para mim porque normalmente trabalho melhor de manhã", revela o escritor luso-americano.
"Acho que todos estamos a ser afetados pela situação. Seria quase impensável e impossível não sermos afetados", frisa. "O que eu noto é que não tenho concentração, não me consigo focar na escrita da parte da manhã. Acho que todos precisamos de umas horas por dia para estarmos tranquilos para lidar com isto de uma forma tranquila e não tentar produzir muita coisa, não tentar impressionar outras pessoas, não ser competitivos. Este período poder ser uma oportunidade de valorizar o que é mais pequeno, o que é mais sossegado, os pequenos detalhes da vida e nos quais normalmente não nos focamos", acrescenta o autor, contando que não consegue ver "muitos noticiários porque são muitas notícias negativas".
"Nas últimas semanas, nós perdemos duas pessoas que conhecíamos há muito tempo, a cientista Maria de Sousa e o Luís Sepúlveda. Não consigo ver o Donald Trump porque acho que é uma abominação, é ignorante, perigoso e é um perigo para o mundo inteiro. Não consigo ver o Trump, nem o Boris Johnson, nem o Bolsonaro. É muito triste que neste momento o mundo esteja a ser liderado por gente incompetente, ignorante e nefasta. No meu caso, tenho de desligar-me da tecnologia e não ver muitos e-mails, não ver televisão e não responder ao telemóvel... simplesmente, fazer bolos, ler, escrever poemas, fazer crochet, apreciar o nosso pátio com bambus, regar as plantas, etc, etc. Estou em contacto com muitos amigos e eles são iguais", descreve Richard Zimler ao SAPO Mag.
Já Pedro Abrunhosa conta que a sua quarentena tem sido passada a escrever: "O meu primeiro ofício é a escrita. Como performer, aquilo que eu faço no palco é interpretar o que escrevo. Portanto, estes são tempos bons para a escrita porque a escrita, ela própria, já é um confinamento voluntário. Tenho escrito mais, tenho tocado muito - felizmente consigo ter no meu estúdio um ambiente de trabalho propício ao confinamento. O ato da escrita e da música fazem-se em silêncio e, portanto, não houve uma grande quebra de rotina da minha vida".
Ao SAPO Mag, Carolina Carvalho conta ainda que tenta manter o seu "horário normal" e tentado "ter ideias para fazer coisas diferentes". "Também tenho aproveitado para ver algumas peças de teatro, que na não tinha conseguido ver - agora através das iniciativas do teatro online, tenho aproveitado para me pôr a par", conta.
"O primeiro teatro que vi a disponibilizar peças online, mas não sei se foi o primeiro, foi o Teatro Aberto. Lembro-me que falei com a Célia, a diretora do Teatro, e disse-lhe que achava que era uma iniciativa ótima. É uma possibilidade de incentivar ao gosto de ir ao teatro para as pessoas que não têm o hábito de ir ao teatro - em Portugal, não é uma prática assim tão comum", acrescenta.
Com as gravações da série "Golpe de Sorte", da SIC, em suspenso, Carolina Carvalho tem aproveitado o seu tempo livre para "abrir horizontes". "O facto de estares em contacto com vários filmes e várias séries também te incentiva e abre horizontes. Mas a leitura é fundamental e isso acontece em qualquer área. Acho que se te cultivares com várias obras consegues, a nível criativo, expandir a tua capacidade de criar. Tenho lido bastante e isso ajuda-me. Sempre que eu recebo um novo papel, acabo por ir pescar coisas que li num livro, coisas que vi num filme ou série", conta.
E de onde vem inspiração em tempos de COVID-19? Ou não existe?
Para Pedro Abrunhosa, a "inspiração é algo que não existe". "Para já, o que existe é o trabalho e existe um mergulho no universo interior que se tem. Esse universo interior é tão mais rico, quão mais rico foi a vivência. Não é pelo facto de estarmos um mês em casa que a vivência que tivemos ao longo da vida vai menorizar", frisa. "Há um mergulho interior e há outra forma, que é o mergulho interior na coisa dos outros: na literatura, algo que tem acontecido mais agora e leio de forma bastante compulsiva; e no cinema bom. Por exemplo, ler Dostoiévski é viver aquilo que nós jamais conseguiremos viver. Isso também é um enriquecimento pessoal para a nossa vivência. No meio daquilo ou no meio de um filme do Fellini, há sempre qualquer coisa que vai disparar um gatilho criativo ao qual depois, de forma comum, se chama inspiração. Mas não é inspiração, é algo que está resiliente na memória... que os psiquiatras, os psicoterapeutas conseguem ir buscar, mas que nós autores e criadores também conseguimos ir de outra maneira buscar. Não de uma forma terapêutica, mas às vezes de uma forma dolorosa", defende, acrescentando que "ir beber à criação dos outros é altamente motivacional".
Richard Zimler confessa que o que se passa no mundo o tem afetado. "Tipicamente, nos últimos 25 anos, escrevi os meus romances de manhã. Tenho notado, que nas últimas três ou quatro semanas, que não consigo concentrar-me tão bem de manhã - preciso de um tempo para descontrair, para permanecer calmo. Só da parte da tarde é que consigo trabalhar na escrita", confessa.
"Sou um pouco esquizofrénico nisso: por um lado, tenho escrito vários textos sobre a quarentena, sobre este período de crise; por outro lado, estou a escrever um romance que decorre em Portugal no século XVII e que é completamente diferente da situação atual e estou a lidar com problemas, com situações, com personagens que não estão relacionadas com a crise atual. Obviamente que as grandes questões da vida são sempre iguais - o amor, a crueldade, a tolerância, a intolerância, a morte. É tudo igual, as emoções são basicamente iguais", conta o escritor e mestre em Jornalismo pela Stanford University.
"A COVID-19 é também uma bruta fonte de criatividade"
"Mas escrever um romance que decorre há muito tempo, há três séculos, dá-me a oportunidade de me afastar da situação atual. Aho que isso é muito útil e cada pessoa tem uma solução diferente: uns vão ouvir música, outras vão brincar com as crianças, outras vai regar ou plantar coisas no jardim... cada pessoa tem uma solução diferente. A minha solução é voltar para o século XVII e escrever sobre as minhas personagens", revela.
Pedro Abrunhosa diz mais, que "a COVID-19 é também ela própria uma bruta fonte de criatividade": "O facto de estarmos isolados e de estarmos separados, a saudade, a dor, o medo da morte, a percepção da mortalidade é também ela própria um grande motor artístico e criativo. Aliás, toda a obra de arte é, no fundo, uma tentativa de encarar a morte de frente".
E o amanhã?
"Agora desapareceram os concertos por completo, fomos do 100 ao zero. Os músicos deixaram de faturar a 100%, não reduziram 40%", lembra Pedro Abrunhosa. De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual, 98% dos trabalhadores da Cultura, questionados viram trabalhados cancelados e, 33%, por mais de 30 dias.
O inquérito, realizado já na segunda quinzena de março, no contexto de confinamento, em resposta à pandemia de COVID-19, indica ainda que 85 por cento dos trabalhadores questionados são independentes e não têm qualquer proteção laboral, adianta a estrutura sindical.
Para o músico, " a capacidade de resiliência dos músicos" é "uma coisa extraordinária", lembrando que o setor da música enfrentou mudanças radicais nas últimas décadas, nomeadamente com a quebra na venda de discos. "Porque é que os músicos foram os primeiros a reagir? Porque os músicos já lá estavam. Os músicos já estavam no universo digital e, aliás, os músicos foram os primeiros a sofrer com o universo digital e não digo agora, mas há 10 anos quando o CD desapareceu. Os músicos adaptaram-se a esta nova realidade e passaram os seus conteúdos para plataformas digitais. Portanto, quando vem a COVID, os músicos já estão no seu universo digital e já tinham canais de ligação com os seus públicos. Já tinham acabado os discos e agora acabaram os espetáculos, não há classe mais fustigada dos últimos 15 anos do que os músicos que deixaram de vender discos", lembra.
"Perante uma chuva há aqueles que ficam molhados e há os que pedem guarda chuvas. A crise é também sempre uma oportunidade de adaptação. Se assim não fosse, a humanidade vivia ainda numa caverna. A humanidade soube sempre ultrapassar as crises", remata Pedro Abrunhosa.
Para Richard Zimler, "um dos problemas do mundo atual, e não falando propriamente desta crise, é que muitos países estão a ser liderados e dirigidos por pessoas que não valorizam a cultura, por pessoas que só valorizam a economia". "O que é que o Trump sabe de cultura? Ele não sabe nada, só sabe de dinheiro, do seu próprio ego. O que é que o Bolsonaro sabe de cultura? São pessoas sem cultura e acho que esta crise está clarificar essa situação. Mas certos líderes europeus, como o António Costa, estão a fazer um excelente papel porque estão a falar de cultura e não só de economia", advoga o escritor.
"O meu grande medo é que, depois deste período, como é que os grandes cantores vão ganhar a vida? Não podem fazer concertos. Sem concertos, não ganham rigorosamente nada e no mundo editorial acontece algo semelhante. O volume de vendas de livros baixou em 70% no mês passado. Como é que os autores, os livreiros e os editores vão ganhar a vida? Não faço a mais pequena ideia... mas depois desta crise passar vamos ter uma segunda crise", avisa.
"A solidão dos que juntam multidões"
O regresso dos concertos e festivais e a reabertura de salas de espetáculo deverá ser gradual, ao longo dos próximos meses. "O que é que se vai passar quando este impacto se mitigar? O que vai acontecer é que as pessoas não se vão libertar com medo de se juntarem. O afastamento social pode funcionar para alguns negócios, pode até funcionar para o comércio, funciona certamente para a banca, para uma série de serviços e até para a restauração pode começar a funcionar... mas, para nós, nós vivemos de juntar multidões, não - os meus últimos Coliseus tiveram várias datas esgotadas, o espetáculo que eu fiz na Avenida dos Aliados, na passagem de ano, tinha 200 mil pessoas. Isso não vai regressar tão rápido", alerta, sublinhando que "é uma espécie de cometa": "Estamos a levar com o cometa e com a cauda do comenta".
"É uma metáfora, da solidão dos que juntam multidões", acrescenta ao músico, lembrando o texto que escreveu no jornal Público.
Richard Zimler partilha da mesma opinião. "Acho que depois da crise acabar vai levar algum tempo a voltar que tudo volte à normalidade. Acho que estamos a sonhar, a fantasiar, se pensarmos que tudo vai voltar ao normal logo a seguir. Vai demorar algum tempo a recuperar, para as pessoas se sentirem confortáveis nos restaurantes, nos concertos ou nos espetáculos desportivos. Por isso, a recuperação económica, social e cultural deve levar muitos meses e o grande desafio é aguentar, é sobreviver", defende o escritor. "Sobreviver financeiramente e psicologicamente. Algumas pessoas fortes vão sobreviver bem e as pessoas mais frágeis... não. Então, o desafio dos próximos meses é ajudar os mais vulneráveis, ajudar as pessoas mais pobres, mais psicologicamente frágeis e todos nós vamos ter de fazer um esforço muito grande nesse sentido ou vamos perder muita gente", termina.
Comentários