Criado e interpretado por três mulheres negras, Cleo Tavares, Isabél Zuaa e Nádia Yracema, a peça pretende ser “um mergulho” sobre as experiências das três atrizes portuguesas que partilham as suas vivências, desconstruindo estereótipos a partir das suas próprias memórias, que começam na infância e atravessam todo um percurso de vida até à constatação da invisibilidade a que os corpos negros estão sujeitos, no ramo do espetáculo.
“Particularmente os corpos das mulheres negras”, concordaram as três criadoras, numa conversa com a imprensa, após um dos últimos ensaios antes da estreia na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), onde estará em cena até 13 de setembro.
Para as autoras, o acesso à construção das narrativas é constantemente negado aos atores negros, normalmente relegados para papéis estereotipados que vão ao encontro de uma construção previamente concebida e que se estende também ao meio audiovisual.
“Tem de existir mais diversidade quando se forma uma equipa, porque são pessoas que trazem outra sensibilidade, outras histórias. Porque, normalmente, o pensamento de quem escreve é condicionado à partida”, assumiu Cleo Tavares.
A atriz recordava que no meio artístico é “constantemente debatida pela cor da pele”, uma ideia à qual Isabél Zuaa acrescentou que normalmente “o preto, quando está no palco, representa todos os pretos, mas o branco não representa todos os brancos”.
Mas a invisibilidade dos corpos negros não ‘morre’ nos palcos, antes estende-se por toda a sociedade portuguesa em detalhes como a dificuldade de aceitação das línguas nativas.
Por isso, em “Aurora Negra” estão em cena três mulheres que falam crioulo, tchokwe e português, “na condição de estrangeiras”, num país “onde são faladas essas três línguas”.
O objetivo de algumas cenas onde as personagens trocam impressões nessas línguas é, precisamente, ‘obrigar’ o espetador a, “de repente, estar nesse lugar de estrangeiro”, explicou Nádia Yracema, numa ideia corroborada por Isabél Zuaa.
“Essa questão tem a ver com as nossas línguas de origem e, de alguma forma, poder colocá-las aqui enquanto guardiãs de pequenos segredos. Aquilo que queremos que todos percebam, no geral, é isso, de as pessoas se sentirem estrangeiras no seu próprio país, como muitos se sentiram estrangeiros no seu próprio país onde a língua oficial é o português”, explicou Zuaa.
E foi, precisamente, com o regresso de Isabél Zuaa, do Brasil, que “Aurora Negra” começou a ganhar forma, “há cerca de quatro anos”, quando a atriz revelou o desejo de juntar as três criadoras e protagonistas da peça.
“A Isabél [Zuaa] lançou a proposta para a mesa e começámos a trabalhar nela. Fomos esperando e concorrendo a apoios, e agora recebemos a Bolsa [Amélia Rey Colaço] e conseguimos colocá-la em palco”, revelou a atriz.
O prémio destinado a apoiar a produção de espetáculos de jovens artistas e companhias emergentes, foi um ‘empurrão’ para uma ideia que, caso contrário, provavelmente acabaria por conhecer a luz do dia “noutros moldes”, de acordo com Nádia Yracema, mas desta forma permitiu às autoras “ir mais além e acrescentar mais coisas”, como explicou Cleo Tavares.
“A Bolsa [Amélia Rey Colaço] possibilitou-nos ir mais além. Quando tens esse suporte financeiro, dá-te tempo para experimentar mais coisas, deu-nos esse conforto de poder ser criadoras e experimentar várias coisas”, acrescentou Cleo.
A Bolsa Amélia Rey Colaço, no valor de 22 mil euros, é uma iniciativa do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, criada em 2018, que se destina "a apoiar a produção de espetáculos de jovens artistas e companhias emergentes, promovendo a renovação da criação teatral portuguesa".
O prémio, em homenagem ao papel pioneiro da atriz e encenadora que lhe dá o nome, resulta de uma associação do TNDMII com o Centro Cultural Vila Flor (CCVF), em Guimarães, O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, e o Teatro Viriato, em Viseu, palcos onde “Aurora Negra” será também apresentada.
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