Uma história que começa com um tipo a flutuar, de pernas cruzadas, vestido apenas com umas cuecas brancas, pode ir dar a qualquer lado. Foi assim que Alejandro G. Iñárritu descreveu “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”, filme que realizou em 2014 com um elenco de luxo no topo da sua forma, uma cinematografia irreverente e uma história dos tempos modernos.
O tipo de cuecas brancas é Michael Keaton, na pele de Riggan Thomson. A narrativa começa no camarim de um teatro, nas vésperas da estreia do projeto em que Riggan apostou tudo para recuperar o estrelato (ou a relevância mediática, que é o que interessa na era dos trending topics). Neste caminho do grande ecrã para os palcos (com um esquecimento de quase vinte anos pelo meio), espera receber o respeito do mundo da Broadway.
O super-herói Birdman vive agora dentro da cabeça de Riggan. Numa metáfora para os dilemas internos do protagonista, o alter-ego tenta aliciá-lo para voltar ao papel fácil dos anos de glória. Riggan só quer saciar a sede de atenção do seu ego.
As conversas entre alter-ego e ego chegam-nos com uma voz profunda e envolvente, como só conhecemos com o Batman de Christian Bale. (E não deixa de ser irónico que Iñárritu tenha escolhido Michael Keaton, ele que também vestiu a capa de um super-herói – o mesmo Batman – há várias décadas.)
Além de Michael Keaton num papel onde se excede como ator, “Birdman” está repleto de nomes conhecidos. Edward Norton destaca-se por ser quem é, claro, mas também porque dá vida a Mike, ator de método conhecido na Broadway, um excêntrico a roçar o maníaco que testa os limites de Riggan, naqueles dias tensos antes da estreia. Não é indiferente que Norton tenha também encarnado um super-herói em vidas passadas – foi Bruce Banner, o Incrível Hulk. Emma Stone (antes namorada de Peter Parker, O Homem Aranha) é a filha de Riggan, que sofreu desde cedo com a ausência do pai famoso.
Naomi Watts interpreta uma das atrizes da peça, numa atuação competente mesmo em momentos cómicos não habituais nela. E Zach Galifianakis faz-nos olhar duas vezes antes de termos a certeza de que é ele no papel do agente de Riggan, de cabelo bem domesticado.
Se “Birdman” tem um elenco coeso e orgânico é a Iñárritu que se deve. Diz-se que o realizador foi exigente com os atores, mas conseguiu levá-los a desempenhos excecionais.
Iñárritu preparou tudo ao pormenor. Decidiu gravar o filme como uma história contínua, com apenas 16 cortes visíveis entre planos. É o que vemos quando Riggan vai do camarim, pelos corredores estreitos do teatro, até ao palco. E é o que acontece quando tem de percorrer algumas ruas de Nova Iorque usando apenas (novamente) umas cuecas, antes de chegar à entrada do teatro. Até nos planos em que Birdman voa pelo céu da cidade somos confrontados com uma inesperada sensação de continuidade, como se acompanhássemos o voo.
Não há momentos de quebra. Estamos dentro do filme, a viver os dramas e as exaltações das personagens. Somos embalados pelo jazz que desponta várias vezes, a cunhar um ritmo acelerado à narrativa, a fazer-nos deslizar pelos corredores escuros do teatro, como se conhecêssemos os cantos à casa.
Sabemos quem são as pessoas de que se fala: Martin Scorsese, Michael Fassbender (foi Magneto, de X-Men), Robert Downey, Jr. (o Homem de Ferro, da Marvel). Também nós vivemos no mundo dos trending topics. Os olhos muito azuis de Emma Stone, na cena final, prendem completamente a atenção – e toda a fotografia do filme é vívida e clara, como se a realidade nos passasse à frente. Nem sequer estranhamos os poderes sobrenaturais que Riggan herdou da personagem ou quando sai a voar pelo céu, como o seu alter-ego.
Este quase one shot de Iñárritu obrigou os atores a interpretar várias páginas do guião seguidas, motivo talvez para que a filmagem tenha sido concluída em 23 dias. O elenco sabia ao que ia. Antes de começar a rodar, Iñárritu enviou aos atores uma fotografia de Philippe Petit, o homem que andou sobre um arame estendido entre as Torres Gémeas. A mensagem era clara: se cairmos, falhamos. Em vez de suscitar medo na equipa, Iñárritu conseguiu uma dedicação intensa, como se o sucesso de todos dependesse da entrega de cada um.
“Birdman” é uma comédia? Se fosse, não teria o sucesso que alcançou junto da crítica (Óscares de Melhor Filme, Melhor Argumento, Melhor Realizador e Melhor Fotografia; nomeações para Óscar para Keaton, Norton e Stone; um Globo de Ouro para o ator principal e outro para os argumentistas, além de uma mão-cheia de nomeações; um BAFTA pela cinematografia...). Também não é um drama, porque acontece num ritmo demasiado rápido para a melancolia das histórias tristes.
“Birdman” destaca-se no meio de tantos super-heróis e nem chega sequer a concorrer com eles. Também não ombreia com filmes indie, por provar facilmente que uma história interessante não tem de reservar-se aos nichos ou ter um ritmo aborrecido. Aquelas histórias de aventura fazem falta, mas o cinema que faz sonhar é aquele que existe em “Birdman”.
A época de 2014/2015 foi uma safra feliz, com filmes como “Boyhood – Momentos de uma Vida”, “Whiplash – Nos Limites”, “A Teoria de Tudo”, “Grand Budapest Hotel”, “Interstellar”, “Timbuktu”. Mas não contemos as sagas de super-heróis daqueles dois anos. Se calhar, a tal inesperada virtude da ignorância faz mais sentido a fechar este texto do que no subtítulo de “Birdman”. Riggan luta é contra o anonimato, não para converter os que vivem de olhos fechados!
Nem comédia, nem drama. “Birdman” é uma história original que não se presta a rótulos e vai inspirar-se em Raymond Carver. É magistralmente executada por Iñárritu, que quer ilustrar aquela preocupação dos tempos modernos. Na era das partilhas supersónicas, já não nos atormenta apenas o esquecimento após a morte, mas também a necessidade de sermos relevantes (leia-se, um fenómeno da Internet...) no presente. Deixar obra boa? Isso é conversa do passado. Como diz Riggan, ninguém se lembra que Farrah Fawcett morreu no mesmo dia que Michael Jackson.
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