A Argentina é um país longínquo; mais distante ainda parece o seu cinema – perdido na imensidão da monocultura reinante.
Não é que um certo “mainstream” não tenha sido atingido por obras com “Relatos Selvagens”, “O Clã” ou “O Segredo dos Seus Olhos”, este último vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009. E, certamente, quem acompanha os grandes festivais internacionais já não consegue encontrar programações sem pelo menos um título vindo do país.
Em Lisboa, a Mostra Ibero-americana encerra este sábado. Sempre aberto a novos horizontes, o SAPO Mag conversou com o académico Jorge La Ferla, presente no evento, sobre novíssimos projetos do país apresentados na programação.
Como causa para a maior presença em festivais, ele aponta para “uma nova geração saída das universidades – muito distante dos autodidatas de antigamente. Até porque, com a destruição da indústria patrocinada pelos longos anos de ditadura militar, quando o projeto era transformar a Argentina numa economia medieval, pré-industrial, o cinema tornou-se uma das suas vítimas. Seria impossível aprender dentro do ofício”.
"Cinco noches, cinco películas"
Para Jorge La Ferla um dos mais interessantes aspetos das obras selecionadas para a Mostra é a diversidade da sua origem. Esta não traz apenas projetos “portenhos” [de Buenos Aires], dos cinco filmes três são de regiões do interior. Duas vêm do Norte, com os seus rios e paisagens verdes; outra traz o branco da Patagónia.
“São todas obras independentes, de autor, com a busca de algo diferente. Não é ‘standard’, comercial”, assinala.
O claro e o escuro
Começando pelo mundo urbano: o contraste não podia ser mais nítido entre “La Noche”, de Edgardo Castro, e “La Luz Incidente”, de Ariel Rotter.
“'La Noche’ é um filme de exteriores, com câmara na mão, sem iluminação, com uma estética mais documental. Também é contemporâneo, atual, apresenta Buenos Aires na vida noturna, com os seus espetáculos, restaurantes e buscas sexuais”, explica o crítico.
Por seu lado, “La Luz Incidente” “é uma obra de interiores, onde mostra a classe alta, retomando uma via do cinema argentino dos anos 60, muito inspirado no neorrealismo italiano. É um filme que dialoga com [Michelangelo] Antonioni, especialmente com “As Amigas” [1955] – abordando a classe média-alta, gente que não trabalha, com boas roupas e crises pessoais. É um exercício de estilo, com um cuidado importante para a arte da decoração, o enquadramento, os tempos”.
O verde e o som dos rios
Já o escritor Juan José Saer, que viveu os seus últimos anos em França, inspirou duas histórias de cunho muito diferente. Ele colocou-as fora de Buenos Aires, na província de Santa Fé, muito perto do rio Paraná, na fronteira com Brasil. Daí saíram dois filmes, “El Limonero Real” e “Tublanc”.
“São paisagens que não têm nada a ver com Buenos Aires, marcadas pela presença do rio, pelo verde circundante. Não é trópico e, ao mesmo tempo, tem uma forma particular de viver, de falar”, observa o académico.
No caso de “El Limonero Real”, trata-se da história íntima de uma família que vive frente ao rio, muito marcada pela natureza.
“É um filme muito experimental, não é uma adaptação literal, é mais poética e com muitas elipses. O enredo situa-se na noite de encontro de Ano Novo, ao qual uma das pessoas da família não quer ir porque há um luto de um filho que morreu há muitos anos. É muito bem filmado e um trabalho de som incrível”, destaca.
Por seu lado “Toublanc”, de Iván Fund, é uma espécie de “thriller”, onde “conta muito o que não é dito, o que não é mostrado, é um filme de pura sugestão. Não é para as pipocas, é preciso estar muito atento para se perceber".
O “western” branco
O trabalho da paisagem tem outro grande momento com “El Invierno”, projeto de estreia de Emiliano Torres”.
A ação decorre na Patagónia, onde a neve, a montanha, o branco, cobrem toda uma história familiar, com elementos de “thriller” e, até, "western".
“Existe esta luta do homem contra natureza, que até podia entrar num filme de John Ford”, avança Jorge La Ferla.
Ao mesmo tempo, “este realizador tem um olho para construir as cenas como se fossem quadros, com o seu uso das cores – e com muito boas atuações”, complementa.
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