Jim Jarmusch, um dos grandes nomes do cinema independente norte-americano e com muito espírito europeu, obteve a consagração máxima do Festival de Veneza, ganhando este sábado o Leão de Ouro de Melhor Filme na 82ª edição com "Father Mother Sister Brother".

É o maior prémio numa carreira celebrada por filmes como "Homem Morto" (1995), "Ghost Dog - O Método do Samurai" (1999), "Só os Amantes Sobrevivem" (2013) e "Paterson" (2016), mas cuja maior consagração fora com "Broken Flowers - Flores Partidas" (2005), Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes, onde o cineasta de 72 anos costumava apresentar os seus trabalhos.

Com um elenco de estrelas Cate Blanchett, Adam Driver e o cantor americano Tom Waits, o próprio Jarmusch descreveu o seu trabalho aquando da estreia no festival a 31 de agosto como "uma espécie de filme anti-ação", apresentando três famílias disfuncionais na área rural de Nova Iorque, Dublin e Paris.

Trata-se de um estudo delicado sobre famílias disfuncionais, que recebera críticas maioritariamente positivas pelo seu retrato bem-humorado do embaraço e da culpa.

"Obrigado por apreciarem o nosso filme tranquilo", disse durante o seu discurso de agradecimento.

A escolha foi de um júri presidido pelo compatriota Alexander Payne e que contava com a atriz brasileira Fernanda Torres, a atriz chinesa Zhao Tao, o cineasta francês Stéphane Brizé, a cineasta italiana Maura Delpero, o cineasta romeno Cristian Mungiu e o cineasta iraniano Mohammad Rasoulof, que deixou de fora do palmarés os novos trabalhos de realizadores como Yorgos Lanthimos ("Bugonia"), Guillermo del Toro ("Frankenstein"), Kathryn Bigelow ("A House of Dynamite"), Noah Baumbach ("Jay Kelly"), Park Chan-wook ("No Other Choice"), László Nemes ("Orphan"), François Ozon ("L'Étranger") e Olivier Assayas ("The Wizard of the Kremlin").

"Father Mother Sister Brother"

A cerimónia de sábado foi marcada por vários discursos sobre a guerra de Gaza, com apelos ao fim da intervenção israelita no território, e o prémio mais aplaudido acabou por ser o equivalente a um segundo lugar, o Leão de Prata - Grande Prémio do Júri, atribuído a "The Voice of Hind Rajab", de Kaouther Ben Hania, o mais falado em Veneza, com direito a uma ovação de 23 minutos na quarta-feira e vários espectadores a erguer bandeiras palestinianas e a gritar slogans na sala do palácio de festivais.

O filme conta a história real de uma menina palestiniana de cinco anos morta pelas forças israelitas enquanto tentava fugir da Cidade de Gaza, recriando as longas horas vividas a 29 de janeiro de 2024, quando os trabalhadores de um centro de emergência em Ramallah, na Cisjordânia, a tentaram salvar quando estava refugiada num carro com seis familiares.

Com o consentimento da sua mãe, foram utilizadas no filme as gravações reais da chamada em que Hind Rajab pedia socorro; registos que causaram grande comoção em todo o mundo quando vieram à tona.

"The Voice of Hind Rajab"

No seu discurso, Ben Hania disse que "a voz de Hind é a voz da própria Gaza, um grito de resgate que o mundo inteiro pôde ouvir, mas ninguém respondeu”.

E acrescentou: “A sua voz continuará a ecoar até que a responsabilização seja real, até que a justiça seja feita. Todos nós acreditamos na força do cinema. É o que nos reúne aqui esta noite e o que nos dá a coragem de contar histórias que, de outra forma, poderiam ser enterradas. O cinema não pode trazer Hind de volta. Nem pode apagar a atrocidade cometida contra ela. Nada poderá jamais restaurar o que foi tirado. Mas o cinema pode preservar a sua voz, fazê-la ressoar além-fronteiras, porque a sua história não é só dela. É tragicamente a história de um povo inteiro que sofre o genocídio infligido por um regime israelita criminoso que age impunemente”.

Rampa de lançamento

"The Smashing Machine"

A crítica foi amplamente positiva em relação à programação de filmes em Veneza este ano. O festival é uma importante rampa de lançamento para produções internacionais de grande orçamento e filmes mais artísticos.

Vários vencedores anteriores do prestigiado Leão de Ouro alcançaram a glória nos Óscares, como "Nomadland" e "Joker".

Nesse sentido, outro importante prémio, equivalente a um terceiro lugar e que dará um "empurrão" na campanha para as estatuetas douradas, foi o Leão de Prata de Melhor Realização para Benny Safdie por "The Smashing Machine - Coração de Lutador", com uma prestação muito elogiada de Dwayne Johnson na transformação no lutador veterano de MMA Mark Kerr, com Emily Blunt como a sua esposa.

No entanto, foi o veterano Toni Servillo a receber um muito aplaudido prémio de Melhor Ator pelo surrealista "La Grazia", a mais recente colaboração artística com o realizador Paolo Sorrentino, mais conhecido do público internacional por "A Grande Beleza" (2013), vencedor do Óscar de Melhor Filme Internacional (e, claro, protagonizado por Servillo).

Com 66 anos, um dos nomes mais acarinhados do cinema italiano e internacional surge no papel de um presidente italiano, viúvo católico, comedido e reflexivo, que reprimiu muitas crises políticas no passado, frustrado pela sua indecisão em aprovar ou não um projeto de lei sobre a eutanásia e dois pedidos de clemência em nome de assassinos condenados, recheados de consequências morais, quando está a meses do fim do seu mandato presidencial e sob a pressão da sua filha advogada. Uma história onde os espectadores italianos reconhecem ecos evidentes dos atuais moradores do Palácio do Quirinal, a sede presidencial do país — Sergio Mattarella e a sua filha Laura, advogada.

"La Grazia"

Menos conhecida dos espectadores portugueses, a não ser pelos que viram a série "Blossoms Shanghai", de Wong Kar-wai, é a chinesa Xin Zhilei, que fez um longo discurso de agradecimentos apesar da música intrusiva para a apressar, contemplada com a Taça Volpi Cup de Melhor Atriz por "The Sun Rises on Un All", um drama sobre uma mulher que, sete anos depois, reencontra e tenta fazer as pazes com o ex-amante, que cumpriu uma pena de prisão por um crime que ela cometeu.

Xin Zhilei com o seu prémio de Melhor Atriz no Festival de Veneza a 6 de setembro de 2025 créditos: Lusa

O Prémio Especial do Júri foi para "Sotte le Nuvole", do aclamado cineasta Gianfranco Rosi, um documentário suptuoso sobre Nápoles, apresentando fragmentos diários das vidas das pessoas daquela que é a terceira cidade mais populosa de Itália.

"À pied d'œuvre", o novo filme de Valérie Donzelli, atriz e realizadora celebrada por "Declaração de Guerra" (2011), recebeu o prémio de Melhor Argumento, para a própria Donzelli, em colaboração com Gilles Marchand (também conhecido como realizador), sobre a história verdadeira de um fotógrafo de sucesso (Bastien Bouillon, conhecido por "A Noite do Dia 12"), que desiste de tudo para se tornar escritor — e descobre a pobreza. Foi descrito no festival como um "relato radical" sobre o percurso de um homem "disposto a pagar o preço máximo pela sua liberdade".

Dos 21 filmes que estavam a concurso, o oitavo premiado foi "Silent Friend", graças à prestação da suíça Luna Wedler, que recebeu o Prémio Marcello Mastroianni para Melhor Jovem Ator ou Atriz. O filme decorre no coração de um jardim botânico numa cidade universitária medieval na Alemanha, onde uma majestosa árvore de ginkgo é a testemunha silenciosa de mais de um século de pessoas que redescobriram a centralidade da natureza num mundo em constante mudança, criuando as histórias de três personagens em 1908, 1972 e 2020.

Na secção paralela Horizontes, dedicada às novas tendências do cinema, o prémio de Melhor Filme foi para "En El Camino", de David Pablos, uma história de amor marcada pela violência que assola o norte do México entre um jovem que foge do seu passado e um camionista que o ajuda.

"En El Camino"

PALMARÉS PRINCIPAL

Leão de Ouro
"Father Mother Sister Brother", de Jim Jarmusch

Leão de Prata - Grande Prémio do Júri
"The Voice of Hind Rajab", de Kaouther Ben Hania

Leão de Prata para Melhor Realização
Benny Safdie ("The Smashing Machine - Coração de Lutador")

Melhor Ator
Toni Servillo ("La Grazia")

Melhor Atriz
Xin Zhilei ("The Sun Rises on Un All")

Prémio Especial do Júri
"Sotte le Nuvole", de Gianfranco Rosi

Melhor Argumento
Valérie Donzelli e Gilles Marchand por "A Pied d’oeuvre"

Prémio Marcello Mastroianni para Melhor Jovem Ator ou Atriz
Luna Wedler ("Silent Friend")

Leão do Futuro – Luigi De Laurentiis para Filme de Estreia
"Short Summer", de Nastia Korkia (secção Giornate degli Autori)

SECÇÃO HORIZONTES

Melhor Filme

"En El Camino", de David Pablos

Melhor Realização
Anuparna Roy ("Songs of Forgotten Trees")

Prémio Especial do Júri
"Lost Land", de Akio Fujimoto

Melhor Ator
Giacomo Covi ("A Year of School")

Melhor Atriz
Benedetta Porcaroli ("The Kidnapping of Arabella")

Melhor Argumento
Ana Cristina Barragan ("Hiedra")

Melhor Curta-metragem
"Without Kelly", de Lovisa Siren