Após anos de alguma ausência em Cannes, vários filmes, alguns em competição, abordam nesta edição os primeiros anos da SIDA, quando predominava o medo e o repúdio.

Tanto em "Alpha", de Julia Ducournau, na corrida à Palma de Ouro (a francesa foi premiada com a distinção por "Titane" em 2021), como "The Mysterious Gaze of the Flamingo", do chileno Diego Céspedes, na secção Un Certain Regard, um novo vírus está a causar estragos, especialmente entre os toxicodependnetes e a comunidade LGBTQIA+.

Esta doença misteriosa é incurável e provoca pânico na população, que não sabe como se proteger.

Em "Alpha", uma multidão aglomera-se à frente de um hospital para tentar entrar. No filme chileno, rodado numa terra remota do deserto, acredita-se que a doença é transmitida pelo olhar.

"Alpha"

Ducournau, que mostra no seu filme a doença de forma alegórica, recorda o medo que reinava os anos 1980-1990, em pleno auge da SIDA.

"No pátio do colégio, quando alguém sangrava, era apontado. Se alguém sangrava no futebol, lesionava-se, o joelho sangrava, era apontado. As pessoas não queriam aproximar-se dele", conta à France-Presse a realizadora de 41 anos.

"É uma loucura até que ponto o medo contaminou todos o estratos da sociedade. Isto é o que me aterrorizou, mais do que a doença em si", acrescenta. "Até que ponto se pode ficar sozinho no mundo em dois segundos porque as pessoas decidiram que alguém é um perigo".

Céspedes, de 30 amos, também lembra-se que "tinha uma ideia muita obscura da SIDA", fruto da noção que a sua mãe lhe incutiu, de que era "algo terrível, sujo, perigoso".

Por isso decidiu fazer o filme, cujos protagonistas são mulheres transgénero que vivem repudiadas pela sociedade, mas felizes por estarem juntas. São "personagens luminosas", disse Céspedes.

"The Mysterious Gaze of the Flamingo"

Em "Romería", da espanhola Carla Simón, também em competição, uma jovem viaja até à terra onde os seus pais viveram, ambos toxicodependentes e vítimas da SIDA. Ao conhecer a sua família paterna, muito conservadora, descobre que "escondiam" o seu progenitor.

A partir desta história familiar, Simón, de 38 anos, quis retratar uma época, a dos anos 1980, quando a heroína deixava um rasto de mortes.

"Foi devastador na Espanha, foi o país com uma das taxas mais elevadas de SIDA de toda a Europa", diz.

"Romería"

Simón refletiu muito sobre o paralelismo entre os anos obscuros da SIA e a pandemia de COVID-19.

A recente pandemia também contribui para que as jovens gerações entendam melhor aqueles anos críticos da SIDA que não conheceram.

"Os jovens estão muito, muito desinformados sobre esse tema. E é bom recuperá-lo de vez em quando, continuar a falar sobre isso e entender também o quão traumático foi", afirma Simón.

O mesmo pensa Kevin Robert Frost, presidente da Fundação Americana para a Pesquisa sobre a SIDA (amfAR), que organiza todos os anos uma grande festa em Cannes para arrecadar donativos.

"Para muitos jovens não está presente, não é algo em que pensam nas suas vidas", afirma. "Espero que estes filmes sirvam para consciencializar as pessoas".