“Miúcha - a Voz da Bossa Nova” teve a sua última exibição este domingo, no último dia do Festival IndieLisboa , mas vai voltar às salas portuguesas ao longo do mês de maio pela Zero em Comportamento.
O SAPO Mag conversou com a cineasta Liliane Mutti, que realizou o filme em parceria com Daniel Zarvos.
Irmã de Chico Buarque e esposa durante dez anos de João Gilberto, um dos maiores ícones da música brasileira, Miúcha levou o seu tempo até conseguir libertar-se de um casamento que não favorecia a sua carreira e tornar-se ela própria uma artista, com álbuns originais feitos no final dos anos 70.
Conforme conta a realizadora, “Miúcha - a Voz da Bossa Nova” demorou cerca de dez anos a ser feito e acabou por beneficiar de um mecenato que possibilitou a obtenção dos direitos para as diversas músicas originais utilizadas no filme. Miúcha, que apoiou o projeto, veio a falecer em 2018, aos 81 anos, na fase de montagem - enquanto João Gilberto partiria seis meses depois.
O filme começa quando uma muito jovem Miúcha, em 1963, deixa tudo para trás e embarca numa viagem para a Europa. Uma grande aventura, e onde certamente não era comum uma mulher a tocar pelas ruas de Paris para ganhar dinheiro, culminou num concerto onde conheceu João Gilberto, já consagrado e com quem viria a casar. E apesar de ele ser um artista cujo espírito poderia combinar com o forma de ser de Miúcha, a experiência não se revelaria uma das mais positivas…
“Um dos elementos simbólicos do filme é a chave”, diz Liliane Mutti.
“Ela faz essa viagem quando descobre que o seu irmão Chico, que tinha menos sete anos do que ela, tinha acesso à chave de casa - algo que a fez compreender o papel destinado às mulheres na família”, diz.
João Gilberto, por seu lado, não fica muito bem na fotografia neste retrato reconstruído a partir de cartas de Miúcha, que bem poderiam compor um diário, tal a frequência e o tom confessional do material.
Depois de terem a filha, que uma vez adulta também seria cantora (Bebel Gilberto, a viver em Nova Iorque), Miúcha começa também a desejar ter a sua carreira - que é completamente estrangulada por um marido manipulador e egocêntrico. O ponto de rutura seria inevitável e só depois de regressar com a filha para o Brasil é que poderia começar.
Um dos grandes problemas enfrentados por Liliane Mutti, conforme conta, diz respeito à seleção do material: apesar do apoio de Miúcha e da possibilidade de ler as suas cartas, o projeto acabou por ir parar a um limbo entre o “autorizado” e o “não-autorizado”.
“Tinha muito respeito pelas pessoas envolvidas. Tive acesso às cartas dela, mas tinha de ter muito bom senso para decidir o que podia ir parar ao filme”, observa.
Uma questão muito especial, neste sentido, foi a de que a própria Miúcha sempre protegeu João Gilberto, com quem conviveu até ao fim da vida.
Também não estava muito certo que a cantora, vinda de outra geração, apoiasse um apelo mais feminista para o filme - que, na verdade, é mais rico pelas contradições que mostra nas dinâmicas da vida de Miúcha do que seria se aderisse a um eventual panfletarismo militante.
Conforme acredita a cineasta, apesar de ela não abraçar nenhum discurso em particular, as suas ações concorreram para uma série de ruturas para com o papel que estava estabelecido para as mulheres naqueles tempos...
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