Rosetta é uma jovem impulsiva que vive numa caravana com a sua mãe alcoólica e desempregada nos arredores de Liége. Constantemente a mudar de emprego, quer desesperadamente um que lhe dê a estabilidade desejada.

Foi a primeira audição, o primeiro papel e o primeiro prémio, logo o de Melhor Atriz do Festival de Cannes. Tudo aos 18 anos.

Descoberta para uma estreia fulgurante no cinema no vencedor da Palma de Ouro de Cannes "Rosetta" (1999), dos irmãos Dardenne, a atriz belga Émilie Dequenne morreu aos 43 anos ao início da noite de domingo na região de Paris, de um cancro raro.

A sua família e a sua agente, Danielle Gain, anunciaram a notícia à agência France-Presse (AFP). A atriz passou vários dias nos cuidados paliativos no Hospital Gustave Roussy.

Émilie Dequenne revelou em outubro de 2023 que tinha carcinoma adrenocortical (um cancro maligno raro frequentemente agressivo do sistema endócrino), diagnosticado dois meses antes e que a manteve longe dos sets de rodagem desde então.

"Que batalha feroz! E não se escolhe...", partilhou no Instagram a 4 de fevereiro, Dia Mundial do Cancro.

Em dezembro, disse ao canal TF1 que estava a lutar contra uma doença cada vez mais agressiva, o que significava que "não viveria tanto como se esperava". Efetivamente, teve uma recaída após a remissão.

O seu cancro era um tumor maligno da glândula suprarrenal, para o qual o prognóstico é ainda pior quanto maior for o tumor.

Um talento precoce

Jean-Pierre e Luc Dardenne posam com a atriz na antestreia mundial de "Rosetta" a 23 de maio de 1999

Nascida a 29 de agosto de 1981, Émilie Dequenne foi revelada pelo seu primeiro papel em "Rosetta", dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, com o júri do Festival de Cannes presidido pelo cineasta David Cronenberg a atribuir-lhe a Palma de Ouro e o Prémio de Melhor Atriz.

"Ela deu uma vitalidade incrível a um filme que já estava a mover-se a 100 à hora", disse Gilles Jacob, ex-presidente do Festival, numa mensagem à AFP.

"Émilie lutou como a cabrinha do senhor Seguin [uma referência a um conto do romancista francês do século XIX Alphonse Daudet] Podia-se sentir nela a gentileza destemida daqueles que sabem que os seus dias estão contados", acrescentou.

Émilie Dequenne em Cannes a 17 de maio de 2023

Dizer que as coisas aconteceram rapidamente a Émilie Dequenne é pouco.

"Aos dois anos, falava como uma adulta. Aos 8, a minha mãe colocou-me num curso de representação porque cantava nas mesas", disse a atriz, que passou os seus primeiros anos na província belga de Hainaut, onde "se tinha que viajar 25 quilómetros para ver um filme".

À consagração de Cannes por "Rosetta", seguiu-se dois anos depois o nascimento da sua filha Milla.

Não é surpresa para ninguém que conheceu esta jovem de bochechas rechonchudas, uma "empreendedora" e uma personalidade "determinada".

"Como a minha mãe costumava dizer quando era pequena: 'Matarias os outros para atingires os teus objetivos'", contou.

A crescer num meio modesto, sabia de onde vinha e gostava de apontar isso.

"Recebi uma educação de classe trabalhadora, com respeito por um trabalho bem feito", insistia.

"Pas son genre"

A atriz, que foi parceira do ator Michel Ferracci, também disse que não gostava de "diferenças sociais ou culturais".

"Fui criada numa família onde todos eram tratados de forma igual, eram todos reis!", explicou no lançamento de "Pas son genre" (2014), no qual interpretou uma cabeleireira provinciana apaixonada por um professor de filosofia parisiense. Uma história de amor dirigida pelo seu compatriota Lucas Belvaux, que elogiou a sua "empatia" e "proximidade com a personagem".

No entanto, teve que evitar a armadilha de permanecer presa em papéis sociais, como o de Rosetta, a jovem rebelde que perdia o seu emprego na fábrica. Émilie Dequenne trabalhou para isso ao longo de uma carreira que abrangeu quase 50 filmes.

Foi o que aconteceu logo com o segundo, "O Pacto dos Lobos" (2001), um 'thriller' de época de grande orçamento no qual interpretava o papel de uma condessa ao lado de Vincent Cassel, Monica Bellucci, Mark Dacascos e Jérémie Renier.

"O Pacto dos Lobos"

Para André Téchiné, em 2009, interpretou em "La fille du RER" uma jovem que alega ter sido vítima de um ataque antissemita num comboio, mas que inventou tudo.

Três anos depois, foi aclamada pela sua interpretação de uma mãe infanticida em "Os Nossos Filhos" (2012), ao lado de Tahar Rahim e Niels Arestrup.

Dirigido pelo seu compatriota Joachim Lafosse, o filme era novamente inspirado numa história verdadeira e rendeu-lhe o segundo prémio de Melhor atriz do Festival de Cinema de Cannes, na secção Un Certain Regard.

"Os Nossos Filhos"

"Não quero ficar presa a um género, mudo sempre o meu visual", explicava a atriz, que interpretou uma burguesa rica e infeliz no amor em "As Coisas Que Dizemos, As Coisas Que Fazemos" (2020), pelo qual recebeu um César (os "Óscares Franceses") de Melhor Atriz Secundária.

Uma grande alma

"Close"

Em 2022, regressou a Cannes com "Close", de Lukas Dhont, onde era a mãe de um dos adolescentes de 13 anos cuja intimidade inocente, própria da idade, era colocada à prova quando a relação se tornava alvo de comentários depreciativos e preconceituosos por parte dos colegas. A produção belga saiu do festival com o Grande Prémio do Júri e foi nomeada para os Óscar de Melhor Filme Internacional.

A atriz apareceu na passadeira vermelha de Cannes em maio de 2024, sorrindo, com o cabelo curto e ralo devido ao tratamento, para o 25.º aniversário de "Rosetta" e para apresentar o seu último filme, com o título simbólico "Survivre" [Sobreviver, em tradução literal].

Algumas semanas depois, na rádio France Inter, garantia que "podemos viver momentos bonitos, poderosos, mágicos, apesar da doença, é possível".

"As Coisas Que Dizemos, As Coisas Que Fazemos"

A atriz tornou pública a sua luta porque "o cancro não é uma doença vergonhosa" e sentiu a "necessidade de deixar que aqueles que estão doentes saibam que não estão sozinhos".

Muitos atores da sua geração estão a homenagear a atriz no Instagram.

Para Alex Lutz, "o seu talento e gentileza" farão falta.

"Não tenho palavras, só tristeza", disse Alexandra Lamy.

Leïla Bekhti chamou-lhe "uma grande senhora, uma grande alma, uma grande atriz, uma rainha".

"A sua bondade, gentileza, força, beleza, o seu talento e a sua coragem farão muita falta", também escreveu o realizador Hugo Gélin.

"O cinema francófono perdeu, cedo demais, uma atriz talentosa que ainda tinha muito a oferecer", lamentou a ministra da Cultura francesa, Rachida Dati, na rede social X (antigo Twitter).