Margot Benacerraf chegou ao Festival de Cannes acompanhada da mãe e de uma bobine com a sua obra-prima, "Araya", debaixo do braço. Era 1959, ano do início da sua cruzada para promover o cinema venezuelano, objetivo pelo qual lutou até a morte, na quarta-feira, aos 97 anos.

A família de Benacerraf informou da morte em Caracas da premiada cineasta, fundadora da Cinemateca Nacional da Venezuela (1966), viveiro de novas gerações de cineastas e promotora de festivais de cinema no país.

"Era uma mulher absolutamente avançada e vanguardista", disse à France-Presse Alexandra Cariani, diretora da Fundação Margot Benacerraf, que trabalhou com a cineasta durante nove anos.

Benacerraf fez dois filmes: "Reverón" (1952), curta-metragem em homenagem ao pintor venezuelano Armando Reverón, considerado um dos artistas mais importantes do século XX na América, com quem foi a Cannes em 1953, e depois " Araya" (1958), um docuficção poético sobre a vida dos trabalhadores das minas de sal do nordeste do país, que esteve na corrida à Palma de Ouro no ano seguinte.

"Orfeu Negro" foi o vencedor, mas "Araya" recebeu o prémio da crítica internacional, FIPRESCI, e lançou Benacerraf para a fama.

"Ela chegou sem apoio de nenhuma distribuidora, chegou com o filme debaixo do braço", diz Cariani.

"Estava com a sua mãe quando recebeu o prémio [...] É um feito, um feito do cinema latino-americano, venezuelano e tudo o mais. Margot é uma pioneira em todos os sentidos", acrescenta.

'Epopeia'

créditos: Centro Nacional de la Fotografia CENAF

Benacerraf rebelou-se contra o estereótipo da mulher judia da alta sociedade que deveria se casar com um empresário e ter filhos. Na verdade, ele nunca se casou, nem teve filhos.

Depois de estudar Filosofia e Letras na Venezuela, ganhou uma bolsa de três meses para estudar no Departamento de Drama da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde teve o seu primeiro contacto com os sets de cinema.

O seu fascínio levou-a a continuar seus estudos na França.

"Uma formação extremamente exigente", afirma Cariani.

"O seu 'modus operandi' era rigoroso", continua. "Ela mergulhava 100% no assunto que iria abordar."

E foi o que fez com "Reverón", instalando-se na residência do pintor, e depois com "Araya", cujo nome vem da remota península onde estão localizadas gigantescas minas de sal na Venezuela.

A pré-produção durou dois anos, entre pesquisas em arquivos da Europa e visitas aos locais que viviam do sal. Benacerraf filmou depois durante mais de duas semanas.

"Não viu o que filmara até que o filme viajou para a França para ser revelado", diz Milvia Villamizar, chefe do acervo da fundação.

"A pós-produção foi uma epopeia, titânica", acrescenta Cariani.

A primeira versão tinha três horas de duração, mas Cannes mandou reduzir porque era muito longa.

Picasso e García Márquez

Após o prémio, Benacerraf levou o seu filme a outros festivais internacionais, embora só tenha sido lançado no seu país em 1977.

Para as distribuidoras "parecia um risco, era muito estranho, muito autoral", diz Cariani.

Benacerraf não lançou outro filme.

Tinha argumentos prontos que não se concretizaram, como o de "La cándida Eréndira", inspirado no livro de Gabriel García Márquez, que acabou por lhe retirar os direitos.

"Ela demorou muito e García Márquez estava com pressa para fazer o filme", lamenta Cariani. "Foi um episódio muito incómodo na vida dela, muito triste, muito injusto."

O outro grande golpe na sua carreira foi com Pablo Picasso, que "a procurou para filmá-lo, não como pintor, e sim no seu quotidiano".

Mas depois de se separar da artista francesa Françoise Gilot, Picasso "mergulhou na depressão e foi o fim do projeto", acrescenta Villamizar. Ela nunca mais teve acesso ao pintor e o material perdeu-se.

Benacerraf permaneceu ativa até pouco antes da sua morte, sempre apostando com grande intensidade no cinema venezuelano. E "Araya" continua a ser um clássico, o seu legado.

"É um filme que cresce com o tempo, que continua a fascinar", destaca Cariani.