Sábado, pela manhã, no centro da freguesia, em frente aos bairros de casas coloridas e ao lado dos cafés repletos de gente, uma azáfama junto ao cineteatro Miramar revela que é dia de ensaios na Escola de Música de Rabo de Peixe.
Lá dentro, no palco, 16 crianças, todas com menos de dez anos, estão distribuídas em círculo, cada uma com o seu instrumento: há violas, baterias, tambores, flautas e saxofones.
Quatro professores assistem os jovens músicos. Dois escoltam acompanhando com os instrumentos e os outros percorrem os lugares, conversando individualmente com cada aluno, ensinando como se devem colocar as mãos ou explicando uma parte da canção.
“Trabalhamos muito a parte da criatividade e da improvisação. Usamos ferramentas e códigos que tornam a exploração musical acessível a todos e mais atrativa para as crianças, para que seja uma coisa natural. Depois, à medida que vão evoluindo, vamos acrescentando as partes mais técnicas”, explica à agência Lusa Carlos Mendes, diretor artístico da escola.
Aquele grupo de músicos forma o primeiro combo, composto por crianças com menos experiência musical, normalmente mais novas. Quando acabarem, segue-se outro ensaio, desta vez da segunda banda, constituída por jovens mais velhos.
Atualmente, a escola de música está a funcionar apenas aos sábados das 9h00 às 13h00. Além daquele treino em grupo, em várias salas do Miramar decorrem oficinas individuais, onde os alunos têm ensaios especializados num instrumento.
“Trata-se de democratizar a cultura através da proximidade. Este espaço está mesmo no centro da vila, muito perto dos bairros. Eles fazem poucos metros e estão aqui [no Miramar] e encontram esta escola de música que permite um acesso à aprendizagem musical de uma forma mais livre e não tão rígida”, afirmou.
A Escola de Música de Rabo de Peixe nasceu em 2001, integrada na escola básica da freguesia, mudando-se, quatro anos depois, para o cineteatro Miramar enquanto projeto social do serviço educativo do Teatro Micaelense.
Em 2015 foi criada a associação Es.Música.RP para gerir a instituição, que ao longo da sua história tem tido vários projetos “marcantes”, como sessões com os músicos Michael Wimberly, Pedro Moreira e Paulo Oliveira ou o concerto no Rock In Rio 2022 com os Ondamarela e a Associação de Surdos de São Miguel.
A Escola de Música de Rabo de Peixe também já se tornou um símbolo do festival Tremor, com atuações recorrentes no festival.
“São tudo experiências que lhes vão marcar para a vida e permitem uma janela para o mundo e para o futuro. É uma porta de acesso à cultura. Eles ouvem e descobrem. Permite experiências diferentes e conhecer locais novos”, clarifica o professor.
A escola tem cerca de 40 alunos e a média de idades ronda os 10 anos. Quando existem coros, como aconteceu até ao final de 2022, o número chega aos 120.
A maioria dos estudantes é natural de Rabo de Peixe, uma das zonas mais pobres da região, fustigada por uma complexa realidade social. Para muitos, a música é uma "alternativa".
Joana Oliveira, por exemplo, tem 16 anos, é natural da vila e está na escola há três. Sempre “gostou da música” e encontrou ali um local para “aprender imenso”.
“Gosto mais do convívio, os professores tratam-nos muito bem. A música faz-me bem. Faz-me esquecer os problemas. Gosto muito de estar aqui”, revela.
Ao lado, Angélica Palra abana a cabeça em sinal de concordância. A jovem de 14 anos entrou na escola por intermédio da irmã, já há “bastantes anos”.
“Gosto muito do convívio e da maneira como os professores tratam os alunos. Mesmo os colegas estão sempre a ajudar. Se um tem uma dúvida, o outro ajuda. Depois, em vez estarmos nos tempos livres sem fazer nada, podemos vir para aqui tocar, aprender um instrumento e estar com os amigos”, destaca.
Ao ver que as colegas estavam a ser entrevistadas, vários estudantes aproximaram-se, manifestando vontade de serem os próximos a explicar a importância da escola.
“Tenho 16 anos, sou de Rabo de Peixe e estou aqui há quatro anos”, começa por dizer Érica Silva, contando que esteve ausente dos ensaios por uns meses porque não conseguia conciliar com os estudos. Regressou no verão passado porque “já tinha saudades”.
“O que gosto mais é termos concertos fora de Rabo de Peixe. Acho que a importância da escola é alta porque para algumas pessoas pode abrir horizontes”.
A colega Júlia, da mesma idade, faz questão de realçar que ao longo de oito anos “nunca desistiu”. Já “não sabe viver sem a escola de música”, diz, definindo a instituição como uma “comunidade que faz parceiras com o mundo”.
“Essa oportunidade que tivemos de ir ao Rock in Rio foi, para muitos aqui na escola de música, a primeira viagem de avião. Os meus amigos ficaram todos surpresos e com vontade de vir para a escola também. As atuações no Tremor também são especiais. São parcerias com o mundo”, reforça.
As conversas apanharam a mudança de ensaios dos combos. Ao vir buscar o filho de 10 anos, Conceição Sá diz ser uma “testemunha” da “importância” da escola de música.
“O meu filho desenvolveu muita motricidade fina porque ele tem o problema do espetro do autismo. Ele gosta de música. Vive a música. Eles fizeram há pouco tempo uma atuação na igreja. Vi a felicidade que ele tinha nos olhos e o brilho de estar aqui nesta escola”, descreve.
Por isso, Conceição Sá defende que este é um “projeto para valorizar”.
“Isso não pode fechar. Nunca”, atira a encarregada de educação, aludindo a uma possível venda do cineteatro Miramar.
A venda do espaço constou de uma ordem de trabalhos da Assembleia Geral do Teatro Micaelense, mas o presidente do Governo dos Açores garantiu que não vai avançar.
Nenhum aluno paga para frequentar a escola e os professores têm todos as suas profissões, como explica a docente Gianna de Toni, que ensina na escola há 15 anos e, por isso, lembra-se de quando existiam “mais apoios”.
“O projeto está virado não só para os alunos com dificuldades sociais, mas para todos os meninos da vila que queiram aprender. Fazemos o que podemos, mas somos todos trabalhadores. Isto é um projeto que temos ao sábado”, contextualiza.
Gianna de Toni defende que a “escola podia ser maior” e abranger mais alunos – tal como no passado, quando funcionava quase toda a semana -, mas as “condições não o permitem”.
“Tenho um carinho muito especial pelo projeto. Não queria nunca que acabasse, mas também tem de haver condições para continuar. É tudo compactado. É tudo reduzido”, alerta.
Também o diretor Carlos Mendes, quando questionado sobre o futuro, expressa o “desejo de poder chegar a mais crianças”, lamentando que os apoios públicos tenham diminuído desde de que deixaram de estar integrados no Teatro Micaelense.
“Isto é um trabalho na comunidade. É música na comunidade. É uma aprendizagem musical, mas não é para formar músicos – o que não quer dizer que também não se formem músicos aqui -, mas num contexto de desenvolvimento social através da cultura e da música”.
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