Em "This Is My Night", a abrir o concerto, disse logo ao que vinha. "I'm ready and I'm willing/ To pull out the happy feeling", cantou Chaka Khan na noite em que regressou a Portugal para trazer felicidade a um Hipódromo Manuel Possolo muito bem composto (descontando algumas dezenas de cadeiras vazias nas filas da frente) e a aguardar, com euforia visível, a celebração dos seus 50 anos de carreira.
Voz associada ao funk, a ponto de ser frequentemente louvada como a rainha do género, a norte-americana tem rejeitado, no entanto, esse epíteto em várias entrevistas, considerando-o limitador. Afinal, a obra de Yvette Marie Stevens, nome de batismo da artista nascida em Chicago há 71 anos, já atravessou múltiplos géneros e foi das primeiras a abraçar o disco e a fazer pontes com o hip-hop, mantendo também cumplicidades com o R&B, a soul, a pop ou o gospel.
A quase hora e meia em que tomou conta do palco do Hipódromo Manuel Possolo foi, claro, demasiado curta para conjugar todas estas vertentes, mas não falhou numa generosa distribuição de êxitos nem em fazer valer a pujança pela qual a cantora começou a distinguir-se no início dos anos 1970, enquanto vocalista dos Rufus.
Como em qualquer festa que se preze, não esteve sozinha no palco do Ageas Cooljazz. Contou sempre com cinco músicos (um guitarrista, um baixista, um teclista e dois bateristas), três coristas e por vezes com quatro bailarinos, cuja participação tornou tanto o início como o final da noite especialmente aplaudidos. Ainda dona de uma voz (e de uma presença, diga-se) que não acusa mais de sete décadas, Chaka Khan foi lânguida e envolvente nas baladas e aguerrida nos temas mais dinâmicos, nos quais carregou nos agudos e foi tendo réplicas dos espectadores por todo o recinto.
Se é verdade que alguns arranjos soam hoje datados, há canções que garantiram a intemporalidade, sobretudo ao serem defendidas por uma banda robusta, à medida da aniversariante. Foi o caso de "I Feel for You", original de Prince que contou com introdução de Grandmaster Melle Mel e harmónica de Stevie Wonder na versão gravada, pioneira ao aceitar contaminações hip-hop. "I'm Every Woman", clássico disco, contribuiu para uma reta final apoteótica que "Ain't Nobody" consolidou - original dos Rufus, é outro single que fez de Chaka Khan uma instituição.
A influência da cantora em géneros que vão além do funk também se fez notar num interlúdio durante o qual abandonou o palco e o deixou a cargo de um DJ e dos bailarinos. Entre remisturas que acolheram house ou disco, ouviu-se "Music Sounds Better with You", hino dançável dos franceses Stardust com um sample de guitarra da canção "Fate", de... Chaka Khan (single curiosamente também recuperado por um DJ há poucos dias, antes do concerto das Cansei de der Sexy no Lisboa ao Vivo).
Quando a palavra de ordem era a celebração, não admira que até os espectadores nas zonas com cadeiras tenham insistido em manter-se de pé durante boa parte do tempo. Para esta festa resultar melhor, só faltou um palco um pouco mais alto, capaz de impedir que a visibilidade de quem estava mais atrás ficasse comprometida (impressão que o concerto dos Air já tinha deixado na terça-feira).
Da grande calma à grande festa
Antes de Chaka Khan e companhia subirem a palco, os Morcheeba foram recebendo os primeiros espectadores ao entardecer. Os britânicos arrancaram com a calmaria veraneante de "The Sea", começaram a convidar à dança em "Friction" e despediram-se já pela noite dentro, perante uma casa cheia e um público rendido.
Motor de um espetáculo em crescendo, Skye Edwards foi uma anfitriã pela qual os anos não parecem ter passado desde que o trio formado com os irmãos Paul e Ross Godfrey (o primeiro abandonou o grupo em 2014) era uma das esperanças do trip-hop. A voz mantém-se cristalina e insinuante, a postura fresca e jovial, por muito que a música dos Morcheeba tenha mudado.
"Vamos recuar no tempo e até mil novecentos e noventa e...? 1996, claro", disse a vocalista antes de "Never an Easy Way", tema do álbum de estreia, "Who Can You Trust?", e um dos grandes momentos do concerto - especialmente quando os riffs de guitarra de Ross Godfrey e um trabalho de luz a jogar com a sombra desviaram a canção da serenidade inicial.
Embora esse disco fosse dominado por um clima de fim de festa, os sucessores abriram caminho a uma pop pintada de soul, funk ou hip-hop. Mas dos primórdios chegou outra das melhores canções da noite (sim, incluindo o repertório de Chaka Khan), "Trigger Hippie", viagem de aura magnética e noturna - com uma inesperada e oportuna intromissão de "Love to Love You Baby", de Donna Summer, no final - que não destoou ao lado de "Oh Oh Yeah", faixa do álbum mais recente do grupo, "Blackest Blue" (2021), um dos mais inspirados desde da colheita inicial.
Com um refrão acompanhado por muitos espectadores, esse single moldou uma sintonia entre banda (além de Edwards e Godfrey, a formação incluiu um baixista, um teclista e um baterista) e público que teve pico expectável em "Rome Wasn't Built in a Day", ainda a canção mais popular dos Morcheeba. Aí, sim, esta moldura humana mostrou-se pronta para receber Chaka Khan, numa combinação de dança, palmas e vozes. Mas ainda houve tempo para "Blindfold", belíssima viagem a um passado mais distante (1998, ano da edição do segundo álbum, "Big Calm") que não merece ser esquecido. "Obrigada por nos receberem e obrigada à Chaka por nos convidar", despediu-se a vocalista. Mas nós é que agradecemos ir a uma festa e ter direito a duas...
Nota: embora a organização recomende o uso de transportes públicos para chegar ao festival, o regresso a Lisboa de comboio é dificultado pela falta de ligação direta entre as estações de Cascais e Cais do Sodré (após os concertos, o trajeto entre as estações de Cascais e Oeiras terá de ser feito de autocarro)
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