Para Mateus Aleluia, que se apresenta hoje em Coimbra, no Convento São Francisco, o culto surge antes da cultura, mas é “a música que dá origem ao culto”.
“É por isso que todo o culto tem música. De uma forma ou de outra, a música deu origem ao mundo”, afirma o músico de 80 anos, que depois de uma carreira com os Tincoãs, nos anos 1970-1980, se dedicou, nos últimos tempos, a um trabalho a solo, em torno do afrocanto barroco, um género que, na sua perspetiva, só poderia ter surgido no lugar onde nasceu, a Cachoeira.
Município do estado brasileiro da Bahia, Cachoeira é um vale, dividido por um rio, que funcionava como uma espécie de “grande cabaça”, que tanto reverberava, à noite, os batuques do candomblé (religião afro-brasileira), como de dia a missa católica e os seus órgãos, referiu.
Também Mateus Aleluia encontrou primeiro a música - essa sinfonia mestiça que ouvia de manhã e à noite na Cachoeira - do que o culto, nomeadamente o candomblé, religião que durante muitos anos foi proibida e que ainda hoje sofre de perseguição no Brasil.
“Todo o mundo de Cachoeira recebeu essa influência. À noite, éramos ninados [embalados] ao som dos batuques. De manhã, era a missa a entrar na cidade. Havia um que dominava, mas culturalmente, as pessoas estavam a ser colonizadas para uma cultura comum, uma cultura afrobarroca”, vincou.
Segundo o músico, a confluência desses sons que inundavam aquela cidade, sustentada “na cultura do dono da terra que é o índio”, com a farinha e a mandioca, acabaram por dar origem aos Tincoãs e ao seu afrocanto barroco, que fez sucesso ao longo dos anos 1970, marcado pelo coro, a viola e o batuque.
Em “Gilgal”, tema de 2021 de Caetano Veloso, o músico brasileiro, sob uma batida de candomblé, proclamava a importância do grupo para a cultura do país: “Nossas almas irmãs, rasgaram manhãs, mas sem chegar aos pés dos Tincoãs”.
Hoje, Mateus Aleluia procura chamar a atenção para essa mesma mistura de referências, sob a forma de algo a que chama de “Bahia Profunda”, celebrando a Baía de Todos-os-Santos, maior baía do Brasil, e um espaço que “reúne tudo num só lugar”.
“Ali, estão todos os santos, todas as forças, todos os desejos, todas as vontades, todas as religiões, todas as etnias, todas as histórias que compõem aquele espaço que se chama Bahia”, salienta, pegando naquele lugar físico, concreto, para o transformar num conceito, como uma espécie de “grande terreiro” que junta todos, os portugueses, outros povos europeus, os indígenas e os africanos que foram escravizados.
Nesse sentido, Mateus Aleluia propõe um projeto que abraça o sincretismo religioso presente na Bahia e o celebra.
“Sobretudo, é despertar todos os intervenientes na ‘Bahia Profunda’ para a sua participação”, nota, querendo também que Lisboa faça parte desse diálogo, cidade a que dá o papel “de encruzilhada do mundo”.
Para Mateus Aleluia, essa visão sobre aquele espaço específico ficou clara depois de sair do Brasil e rumar até Angola, onde viveu 20 anos, com uma pequena pausa pelo meio em Lisboa, uma cidade que vê como “uma mistura de jacaré com cobra de água”, uma cidade que “não deixa de ter a cara da Europa”, mas que “tem a graça do Brasil”.
“Aí, eu pude ver essa triangulação do Atlântico, entre África, Europa e América”, recorda.
Mateus Aleluia salienta também que a ida para Luanda, que era para ser passageira, se transformou num trabalho longo de pesquisa em torno dos cultos africanos e dos seus pontos de contacto com a cultura afro-brasileira.
A chegada à capital de Angola foi, para o músico, assim como que a entrada num “paraíso”.
Muito antes de lá chegar já cantava sobre “Aruanda” – “uma corruptela da palavra” -, como no tema “Deixa a Gira Girar”, de Os Tincoãs.
“Nunca esperava ver Luanda. Era como um paraíso, um ponto místico, porque todos os nossos antepassados eram da costa da Guiné e penso que, para eles, terão saído de um lugar que era um paraíso e foram para um lugar que seria um purgatório ou o inferno. Mesmo nós que não pegámos a escravidão herdámos essa informação, que se mantém nas músicas que cantamos”, diz.
Questionado sobre como compõe e toca hoje, aos 80 anos, Mateus Aleluia olha para o processo como algo espontâneo, à procura de nunca pensar.
“Logicamente, eu penso, mas sempre de forma errada, que não deveria pensar. Deveria simplesmente fazer. Quando penso, eu não sei se é o que pensei ou se é o que você meteu na minha cabeça. Quando eu penso, melhor seria que eu não pensasse e apenas deixasse fluir”, afirma.
Por agora, Mateus Aleluia quer continuar o seu caminho, a apelar à inclusão, a imaginar o tal terreiro ou baía onde todos se juntam como iguais, sempre acreditando que cada dia significa um novo acordar.
“Cada dia, você é diferente. E cada dia teima em continuar a mesma pessoa de ontem. Quando acordar hoje, dê mais um passo para a frente, pergunte qual o seu papel nisto. Não veja o que tem de fazer como uma forma de viver melhor de um ponto de vista material. Isso está levando a gente a uma loucura irreversível. Temos de acordar para o mundo e para a vida e para nós mesmos”, afirma.
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