Uma curiosa - e feliz - coincidência levou a que três dos mais aconselháveis discos nacionais da reta final de 2013 nascessem da releitura de canções. "Voz e Guitarra 2" juntou sangue novo e veteranos numa abordagem minimalista a temas cantados em português. "Caríssimas Canções", de Sérgio Godinho, alargou o espectro temporal e geográfico e revelou o melómano por trás do cantautor.

"As canções d'A Naifa" baliza a viagem entre as décadas de 1960 e 1990, não passa a fronteira e surge como o álbum mais conciso dos três. E talvez também o mais coerente, uma vez que a colheita musical, apesar de diversa - tanto nas épocas como nos estilos - ganha unidade pela voz que se levanta nestas nove canções, de forma mais ou menos direta (a diferença entre o cancioneiro pré e pós-25 de Abril não passa despercebida). A Naifa encarrega-se depois de juntar a sua voz numa revisão pessoal das palavras de Ary dos Santos ou David Mourão-Ferreira e de universos sonoros dos Três Tristes Tigres, GNR, José Mário Branco e outros nomes desalinhados com qualquer ideia de conformismo.

É certo que "As canções d'A Naifa" não será novidade para quem acompanha com alguma atenção o projeto de Maria Antónia "Mitó" Mendes, Luís Varatojo, Sandra Baptista e Samuel Palitos. Estas versões já foram ouvidas em vários palcos, intercaladas com originais do quarteto, mas a sua reunião em disco é mais do que um objeto simpático para marcar a agenda e agradar aos fãs mais acérrimos. Desde a estreia, há quase dez anos, com "Canções Subterrâneas" (2003), que A Naifa tem cantado as palavras de outros, e agora leva mais longe a apropriação num alinhamento capaz de definir uma identidade de álbum, não se esgotando numa mera compilação de releituras.

A Naifa de "As canções d'A Naifa" é, musicalmente, a que conhecemos dos quatro discos anteriores, nascida de encontros entre o fado, a pop, música tradicional portuguesa, pós-punk e alguma eletrónica (desta vez mais discreta do que o habitual). As reações a esta amálgama não têm sido consensuais, mas temas como "Sentidos Pêsames", um dos menos celebrados da fase áurea dos GNR, "Imenso", de Paulo Bragança (também ele a forçar os limites do fado), ou até mesmo "Desfolhada Portuguesa", imortalizado por Simone de Oliveira, são traduzidos para esta linguagem sem grandes desvios do formato original. "Alfama" afasta-se mais da versão dos Mler Ife Dada ao abandonar o seu recolhimento e sair para a rua, como o faz a marcha obstinada de "A Tourada" - a canção e um videoclip a reforçar o manifesto de Fernando Tordo:

Sem medos, Mitó atira-se a um fado de Amália, "Libertação", com alguma reverência inicial, a capella, substituída por um crescendo instrumental. "Inquietação", uma das canções mais icónicas de José Mário Branco, tem direito a intromissão de cacofonia meditativa com vertigem pós-punk. A revisão de "Subida aos Céus", dos Três Tristes Tigres, não corta com o compasso do original mas a combinação baixo/guitarra portuguesa/batida eletrónica insinua-se como alternativa viável.

A transfiguração mais radical será, contudo, a de "Bolero do Coronel Sensível que fez Amor em Monsanto", que substitui os sopros e teclados lustrosos de Vitorino por uma aridez rock mais condizente com as imagens fortíssimas de António Lobo Antunes. A versão, acelerada, segue prego a fundo como o homem que deixou a adolescente à beira da estrada, o atormentado protagonista de uma canção cuja ressonância ainda se faz sentir. E se o relato do escritor é certeiro, há mais frases que ficam de um disco a tornar a revisitação numa alavanca de mudança. "Nós vamos pegar o mundo/ pelos cornos da desgraça/ e fazermos da tristeza/ graça", prometia Ary. A Naifa não tem feito outra coisa.

@Gonçalo Sá