Naturalmente que os vestígios de um berço jazz são indeléveis da espinha-dorsal que norteia as composições de Jamie Cullum, o que significa que, embora pérfido, o rumo que o cantor, compositor e músico enceta em "Momentum" não é mal-agradecido (muito menos pobre). Uma vez que a cisão não é – e provavelmente nunca será – integral, este é um Judas que não acaba com a corda ao pescoço.
O divórcio, parcial e amigável, entre Jamie Cullum e as suas raízes enquanto músico advém sobretudo da sua negligência para com as estruturas despreocupadas e elásticas do típico tema de jazz. "Momentum" é a cara chapada das playlists que perfazem a programação radiofónica mais comercial: não há espaço para confusões entre estrofes e refrão. Aliás, as palavras que emprestam título aos temas são quase sistematicamente pronunciadas no seu clímax – o refrão –, que no jazz, regra geral, não existe. A rigidez das estruturas que "Momentum" inaugura é incompatível com qualquer tipo de deambulações.
A segunda – e não menos decisiva – razão que suscitou este imbróglio tem que ver com a postura do próprio Jamie Cullum. Exceção feita a "Pure Imagination", este novo álbum mostra-nos um Jamie que já não se limita a prostrar-se perante as teclas e deixar-se acompanhar pela cúpula do prato de condução e pela presença simultaneamente vazia e corpulenta do baixo. Ouça-se, por exemplo, "Get a Hold of Yourself", uma baladazinha folk, com uns falsetes à mistura, onde se prescinde completamente do piano.
Videoclip de "Love For $ale" (com Roots Manuva):
O que mais pasma não é isso. O que mais pasma é o desprimor pela coesão estilística, que à partida se refletiria num produto final pouco apetecível. Mas não. Já dissemos atrás, e mantemos, que "Momentum" não é jazz. Mas também não sabemos dizer o que é porque, na realidade, a inconsistência de "Momentum" é a receita para a sua consistência. O disco tem um pouco de tudo: é a busca de um frame mais eletrónico, dos ritmos mais funkeados, do preenchimento instrumental sem perder a reverência, é a imiscuição do rap de Roots Manuva no meio de "Love For $ale". O cúmulo deste ecletismo é tocado em "When I Get Famous", com uma sonoridade desconcertante a fazer lembrar as bandas sonoras que Quentin Tarantino tanto gosta - quem sabe não venha mesmo a pedi-la emprestada a Jamie Cullum.
Mas é impossível desligar a excelência musical da excelência lírica, até porque Jamie se encarrega de ambas, e bem! Sente-se na perfeição a insistência anafórica, a rima inteligente, versátil e nada preguiçosa. O próprio questionamento retórico revela como Jamie Cullum se pretende demarcar categoricamente de paisagens quiméricas e lamechas, apesar de trazer várias vezes o amor para cima da mesa. A experiência e a mundividência pessoais são consagradas através das construções pseudo-poéticas do texto.
Há quem ache inevitável a equiparação a Michael Bublé. Honestamente? Neste disco, Jamie Cullum desenhou bem as fronteiras que os distinguem. O arrojo e a volubilidade tornam a pop de Jamie Cullum numa pop tolerável, daquela que não temos vergonha que o nosso amigo mais próximo possa vir a descobrir nos recantos do nosso MP3.
@Rui Ramalho
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