É seguro dizermos que Caroline Hervé foi, na viragem do milénio, a rainha do electroclash (Peaches que nos perdoe), mas o seu reinado revelou-se tão fugaz como o movimento nascido da recuperação e atualização de alguma pop eletrónica dos anos 1980 associada a uma (sub)cultura hedonista, frívola e sarcástica.

Das colaborações com Felix da Housecat, Golden Boy ou Chicks on Speed ao álbum clássico gravado com The Hacker, onde Miss Kittin relembrava as noites de 1982 ou deixava odes à promiscuidade com Frank Sinatra à mistura, a cantora, compositora e DJ francesa encarnou o papel de dominatrix de voz lacónica e palavras ocasionalmente escabrosas, marcando presença em vários hinos dançáveis do momento.

De então para cá, não esteve propriamente parada - longe disso, aliás - mas também não voltou replicar esses 15 minutos de fama (relativa), pelo menos não de forma tão intensa. As colaborações mantiveram-se e foram acompanhadas por aventuras a solo, embora nem "I Com" (2004) nem "BatBox" (2008) tenham mostrado argumentos tão fortes como os que estavam para trás, prolongando experiências electro e techno sem as mesmas doses de nervo e surpresa.

Videoclip de "What to Wear":

"Calling from the Stars" chega quatro anos depois do último álbum assinado por Miss Kittin - "Two", segunda parceria com The Hacker que ficou aquém do fulgor da estreia - e, apesar de ser o seu registo a solo mais difícil de digerir, é de longe o mais arriscado e coeso. Pouco interessada em voltar ao papel de agente provocadora, a francesa oferece um testemunho de maturidade que nunca se confunde com conformismo, numa coleção de canções com tanto de expansivo como de pessoal.

Numa altura em que a pop eletrónica é, para muitos, sinónimo de EDM preguiçosa e seguidista (ouça-se "Applause", a nova banalidade de Lady Gaga) ou que o dubstep e revisitações do UK garage alimentam boa parte dos hypes, "Calling from the Stars" situa-se quase numa terra de ninguém explorada por Miss Kittin com um à vontade assinalável.
Não encontramos aqui nada de verdadeiramente novo, é certo, e o primeiro disco nem se afasta muito dos antecessores - um sortido geralmente dançável entre o electro, a synth pop e a coldwave marcado pelo formato canção. A diferença é que a receita soa menos requentada do que noutras incursões da francesa a solo e até chega a ser inesperada na segunda metade deste álbum duplo, aquela que atira Miss Kittin para domínios em que dificilmente a imaginaríamos - no caso, os de uma eletrónica densa, abstrata e experimental, mas não hermética, a lembrar a IDM da Warp ou cenários próximos dos Orbital, ambos ancorados nos anos 1990.

Antes dessa faceta mais desafiante, "Calling from the Stars" arranca com a Miss Kittin que bem conhecemos em "Flash Forward", eficaz convite à dança mantido em "Come into My House", aula de aeróbica para as pistas, e "Bassline", vincada por teclados house, voz robótica e com a cantora a tentar meter conversa (sem grande sucesso) com um rapaz tímido (e tal como ela, não demoramos muito a repetir e trautear "You're so shy/ It's a shame/ I can't talk to you").

Videoclip de "Bassline":

Lado a lado com esta eletrónica fria e precisa (por vezes demasiado, caso das meditativas "Life Is My Teacher" e "Tears Like Kisses") surgem momentos como a electropop calorosa de "What to Wear" (para quem tiver saudades dos Goldfrapp mais noctívagos) ou "Maneki Neko" (para quem sentir falta dos Vive La Fête mais irrequietos e pegadiços), ambas bilingues e com o reconhecível sotaque francês de Miss Kittin em alta. A apoteose chega, contudo, com "Eleven", balada celestial sobre uma relação idílica, simultaneamente minimalista e maior do que a vida. Também introspetiva, a milhas do tom épico do original, "Everybody Hurts" é uma bonita versão do clássico dos R.E.M., momento de contenção que faz bem a ponte com o outro disco - o mais etéreo - de "Calling from the Stars".

Entre instrumentais, ou quase (muitas vezes, a voz pouco mais diz do que os títulos das faixas), a segunda metade do álbum daria uma bela banda sonora de um thriller urbano ou de uma saga de ficção científica, tal a dose de episódios contemplativos e sombrios.
A voz esvoaçante de "Only You" dá o mote, a carga enigmática de "Cosmic Love Radiation" não a trai e o resto do alinhamento partilha desse sentido de liberdade - temas longos, menos diretos do que os do primeiro disco, mas talvez mais recompensadores. A exceção é "Sortie des Artistes", interlúdio de dois minutos que deixa uma simpática homenagem à música eletrónica, e o destaque inevitável vai para a perfeição assombrada de "Sunset Mission", cuja arquitetura rítmica de matriz glitch, condimentada com sons de ondas e vento, faz com que imaginemos não tanto um por do sol mas uma praia inóspita a altas horas da madrugada. O suspense continua em "Silver Lake", aqui com direito a spoken word gélido, mas vai abrindo espaço a uma aprazível luminosidade no final a cargo de "I Don't Know How To Move". Assente em teclados e sintetizadores, esta despedida conta-se entre os pontos altos de um álbum pouco amigo da lógica shuffle tão em voga (sobretudo na segunda metade), corajoso como poucos e com uma consistência digna de nota tendo em conta o formato e a duração. Seja bem regressada à área VIP da constelação eletrónica, Miss Kittin.

@Gonçalo Sá