Apontado por muitos como o primeiro filme de ficção científica da história do cinema, ou não fosse da autoria de Georges Méliès, considerado o "pai dos efeitos especiais", "Le voyage dans la Lune" (1902) tem sido particularmente relembrado nos últimos tempos. A exibição de uma versão restaurada, a cores, no festival de Cannes do ano passado, voltou a colocá-lo no centro de algumas atenções, entre estas a de Martin Scorsese, que além de admirar a obra do ilusionista francês fez questão de a citar e homenagear no seu novo filme, "A Invenção de Hugo" - carta de amor aos primórdios do cinema que chega esta semana a salas nacionais, embora não tenha, ao contrário do que ocorreu em alguns países, a nova versão de "Le voyage dans la Lune" como complemento.
Entre os acréscimos a um filme originalmente mudo contou-se a banda sonora assinada pelos Air, com temas criados de raiz para os 16 minutos desta expedição espacial que envolve encontros com extraterrestres ou uma Lua com rosto humano. Não foi a primeira vez que o universo pop-rock se cruzou com o imaginário de Méliès - o videoclip de "Tonight, Tonight" (1996), dos Smashing Pumpkins, era uma alusão bastante evidente a "Le voyage dans la Lune" -, mas dificilmente encontramos uma aliança tão próxima.
Vendo o resultado, até nos parece provável que o "pai dos efeitos especiais" tivesse gostado da música que o duo parisiense ofereceu às suas imagens. As composições instrumentais dos Air guiam-se por ambientes tão irreverentes e exploratórios como a narrativa do filme, reforçando o humor e entusiasmo inocente de algumas sequências e fazendo desta mais uma interessante incursão da dupla pela sétima arte (depois de um primeiro contato na banda sonora de "As Virgens Suicidas", de Sofia Coppola, em 1999).
"Le voyage dans la Lune", o disco, não é, contudo, apenas uma réplica da música que ouvimos no filme. Com cerca do dobro da duração, o alinhamento mantém-se conciso (não indo muito além de meia-hora) mas investe em tonalidades um pouco mais contrastantes. Além de instrumentais, o álbum inclui duas canções: a primeira, "Seven Stars", pede Victoria Legrand emprestada aos Beach House e enquadra-a num cenário onírico inequivocamente Air; a segunda, "Who Am I Now?", apresenta-nos umas Au Revoir Simone mais sombrias do que estávamos à espera, longe da indie pop doce e levezinha a que nos habituaram.
Nos outros momentos, os temas, tal como o filme em que se inspiram, não precisam de recorrer a palavras para nos envolver. "Moon Fever" e "Décollage" deixam belos instantes contemplativos, ao piano, com uma carga cinematográfica bem vincada, e episódios como "Parade" ou "Sonic Armada", mais vibrantes, mostram a veia experimental de Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel, recorrendo a elementos psicadélicos e progressivos para chegar a uma aura de trepidação e mistério.
Não vale a pena procurar aqui singles perfeitos como os de "Moon Safari" (1998), o arrojo robótico de "10 000 Hz Legend" (2001) ou a pop elegante e perfumada de "Talkie Walkie" (2004): o caminho de "Le voyage dans la Lune" é assumidamente outro. Mas é, pelo menos, mais aliciante do que o dos algo desmaiados "Pocket Symphony" (2007) ou "Love 2" (2009). Por isso, caso os Air decidam voltar mais uma vez à Lua, vamos continuar a guardar lugar na sua nave.
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