Um ano depois de ter atuado no NOS Alive, Sam Smith voltou a Portugal para um concerto no palco principal do MEO Kalorama. A estrela britânica, que arrancou a sua carreira há 10 anos, com o lançamento de “In the Lonely Hour”, tem percorrido vários festivais europeus e é sempre responsável por garantir festas onde todos podem ser tudo aquilo que quiserem.

Sem filtros e sem barreiras, Sam Smith arroja sempre no que veste em palco. No MEO Kalorama, a voz de "Lay Me Down" apostou num fato preto, antes de surpreender com opções mais sensuais. Em palco, teve sempre ao seu lado um grupo de bailarinos e um coro, que brilhou durante toda a noite.

Tal como tem acontecido em toda a digressão do disco "Gloria" (2023), Sam Smith arrancou a noite com um dos seus primeiros grandes sucessos da carreira, “Stay With Me” - que conta com uma nova versão, com pequenas alterações na letra, para não refletir o género masculino.

A viagem pelo primeiro álbum de originais continuou com "I'm Not the Only One" e "Like I Can", que garantiram um início triunfal e que convidou a multidão a soltar a voz. Para os concertos, Sam Smith preparou um palco especial, com uma gigante figura de Afrodite ao centro e onde se encaixavam os músicos.

"Isto é fantástico. Uau. Tenho de o dizer: todas as vezes que venho a Lisboa, vocês são sempre a melhor multidão. Como vai ser esta noite? Estão bem? Bem vindos à 'Gloria Tour'. Estamos muito felizes por estarmos aqui convosco esta noite. Temos mais quatro concertos e não podia escolher um lugar melhor para fazer um dos últimos concertos e convosco aqui", agradeceu.

SAM SMITH
SAM SMITH Sam Smith créditos: Tomás Soares Nogueira

"Este concerto é sobre muitas coisas, mas o concerto desta noite é sobre uma coisa em particular: este concerto é sobre liberdade. Por favor, divirtam-se connosco esta noite", pediu Sam Smith antes recordar “Too Good at Goodbyes”, do álbum “The Thrill of It All”.

Depois de aquecer os corações com baladas, a estrela pop fez o público soltar-se para dançar ao som de “Diamonds”, “How Do You Sleep?” e “Dancing With a Stranger”, celebrando com especial euforia nas primeiras filas. A festa continuou animada com “Gimme”, “Lose You” e “Promises”.

Com o Parque da Bela Vista convertido quase numa mega pista de dança colorida, a celebração de Sam Smith seguiu com “I'm Not Here to Make Friends”, com a estrela pop a usar uma longa capa colorida. Seguiram-se mais dois grandes sucessos: “Desire” e “Latch”.

Para o final, a estrela britânica guardou (ainda) mais êxitos - do início ao fim do concerto, é um grande desfile imparável. Vestido de preto e com um um chapéu com corno, Sam Smith trouxe “Gloria” e “Unholy”, que fecharam a noite em total clima de festa, provando que esta é sempre uma aposta segura em qualquer palco, em qualquer festival, de qualquer género.

MASSIVE ATTACK
MASSIVE ATTACK Massive Attack créditos: Tomás Soares Nogueira

Massive Attack: alerta máximo

Se Sam Smith ofereceu um espetáculo com um otimismo em crescendo e a convidar à festa, os seus conterrâneos Massive Attack moveram-se em território substancialmente mais turvo. E sobretudo muito mais cético, com um choque de realidade que, tal como noutras atuações por cá (como a da celebração do álbum "Mezzanine", há cinco anos), pareceu querer desafiar os limites de um concerto.

Se a banda de Bristol se limitasse a um desfile de grandes canções (e elas não faltaram, com momentos de quilate superior como "Angel"), grande parte do público já daria a noite como ganha. Mas Robert "3D" Del Naja e Grant "Daddy G" Marshall, que nunca esconderam a postura interventiva no ADN desta música (o nome não engana, afinal), optaram antes por uma proposta intrigante, na qual a imagem disputou o protagonismo, decididos a deixar o público em estado de alerta em vez de se refugiar num serão escapista.

Opção arrojada para um festival, diga-se, contexto mais dado a que a entrega dos espectadores ceda a uma conversa ou a uma bebida do que numa sala, espaço à partida mais condizente com este projeto cénico. No entanto, a esmagadora maioria do público, que preenchia um recinto bem composto, manteve-se concentrada e atenta às singularidades do regresso da dupla ao longo de cerca de hora e meia.

Entre inúmeros excertos de reportagens televisivas que dominaram o ecrã ao fundo do palco, cruzados com memórias da cultura pop (de filmes da Disney a reality shows), a banda foi aludindo ao individualismo e ao consumismo, alertou sobre a omnipresença tecnológica e mostrou-se, no mínimo, de pé atrás quanto ao rumo da humanidade. E se o cruzamento de imagens de guerra com banalidades virais já perdeu alguma subversão depois de ter sido tão repetido nos espetáculos dos Massive Attack (ainda que possa surpreender quem os vê pela primeira vez), não é menos verdade que esta realidade remisturada ganha outra urgência tendo em conta as situações atuais de Gaza ("Safe From Harm" foi dedicada à Palestina) ou da Ucrânia, dois dos grandes focos temáticos da noite.

Com legendas em português, o grupo denunciou episódios da longa ocupação israelita, reavivou fantasmas de Sarajevo ou do 11 de Setembro, indagou e inquietou. Pena que não tenha chegado a todos os espectadores da mesma forma, já que apenas os que estavam de frente para o palco conseguiram ler toda a informação (os textos não foram replicados nos dois ecrãs laterais).

MASSIVE ATTACK
MASSIVE ATTACK Massive Attack créditos: Tomás Soares Nogueira

A música, essa, chegou a todos, e no seu melhor tanto reforçou pontes entre o trip-hop e o pós-punk (os assombros instrumentais finais de "Group Four" ou da já referida "Safe From Harm") como instigou ao transe em momentos como "Inertia Creeps" ("Karmacoma", outro clássico, ficou apenas a meio caminho). Já a breve passagem por "Lights", de Avicii, deixou uma farpa irónica e sublinhou que este espetáculo não é desprovido de humor, apesar de tudo.

Para a alquimia musical contribuíram as vozes de Elizabeth Fraser, que embalou na eterna "Teardrop" e arrepiou na versão de "Song to the Siren", de Tim Buckley, entre outras. Horace Andy, companheiro de sempre, também não faltou (embora tenha faltado "Man Next Door", outro exemplo de perfeição), nem Deborah Miller, dona de outra grande voz e de outro pico do concerto, "Unfinished Sympathy".

Muito bem-vindos foram também os "novatos" Young Fathers, escoceses claramente influenciados pelas sonoridades mestiças nascidas em Bristol em finais dos anos 1980, das quais os Massive Attack são referência essencial. De volta ao MEO Kalorama depois de uma auspiciosa atuação em nome próprio no ano passado, a banda de Edimburgo teve o palco a seu cargo (e o público a seus pés) durante três canções. A ligação entre os grupos também se manifesta nos discos: "Ceasefire", EP que conta com ambos e com os Fontaines D.C., prolonga o apelo antibélico (as receitas revertem a favor dos Médicos Sem Fronteiras em Gaza e na Cisjordânia) e tenta evitar o vazio civilizacional aterrador das últimas imagens do espetáculo.

Gossip créditos: Tomás Soares Nogueira

Não houve Fever Ray, mas houve Gossip

Antes de uma noite que foi das sombras à luz, o final de tarde teve a primeira grande enchente de público no Palco San Miguel. Mérito dos Gossip, banda que continua a ter no palco o cenário natural depois de um longo hiato. "Real Power", álbum editado em março, interrompeu finalmente um silêncio criativo de 12 anos, mas grande parte do alinhamento do concerto pertenceu antes (sem surpresa) a revisitações dos que estão para trás.

Apresentando-se em formato quinteto, o trio norte-americano liderado por Beth Ditto continua a ter na vocalista o seu trunfo, cujo carisma e pujança vocal foram decisivos para diferenciar os Gossip de tantos outros adeptos da renovação do pós-punk na viragem do milénio.

Espirituosa e tagarela, a anfitriã arrancou, contudo, em modo pesaroso, ao lamentar o cancelamento do concerto de Fever Ray, também agendado para esta quinta-feira. Ditto não só não poupou elogios ao projeto a solo de Karin Dreijer (metade dos suecos The Knife) como pediu ao público que lhe desejasse as melhoras a uma só voz. E os espectadores mais atentos terão identificado breves alusões da vocalista a alguns dos seus temas - pelo menos a "Kandy" e "What They Call Us".

Mas nem essa deceção nem o calor (do qual a mestre de cerimónias se queixou mais de uma vez) travaram o embalo de quase uma hora com sabor a um agradável reencontro de amigos. "Listen Up!", "Love Long Distance", "Men in Love" e a irresistível "Move in the Right Direction" ajudaram a compor um alinhamento eficaz e enérgico, embora não tenham feito sombra ao desvario expectável do clássico "Standing in the Way of Control" (com intromissões de "Smells Like Teen Spirit", dos Nirvana) e da sua irmã mais nova (e quase siamesa) "Heavy Cross". Foi um concerto arrebatador como outros dos Gossip por cá? Não, mas deu para matar as saudades.

O primeiro dia da terceira edição do MEO Kalorama contou ainda com atuações de Loyle Carner, Peggy Gou, Filipe Catto, Filipe Sambado (que substituiu Fever Ray) e Ana Lua Caiano, entre outros. Esta sexta-feira, 30 de junho, o festival acolhe LCD Soundsystem, The Postal Service + Death Cab for Cutie, The Kills, Jungle ou Nation of Language.