“2 de Abril” começa por ser este olhar para o passado, mas sem que as letras, sem que os textos sejam alusivos a isso. No fundo, são aquilo que eu sou com base naquilo que fui vivendo”, contou a cantora e compositora, em entrevista à Lusa.
2 de Abril é o nome do bairro de Setúbal onde Cátia Mazari Oliveira cresceu e de onde saiu aos 26 anos, para “procurar outros caminhos e outras visões do mundo”.
Antes de se apresentar como A garota não, Cátia já escrevia as suas músicas, “só não as mostrava”. O seu percurso começou “por cantar jazz e bossa nova em adegas, bares e hotéis”.
Muitas vezes pediam-lhe que cantasse a canção “Garota de Ipanema”, mas Cátia sentia que “não tinha nada a acrescentar ao tema”, por ser “um dos mais tocados no mundo inteiro, que tem versões de tudo e mais alguma coisa”.
“Já na fase final uma vez disse ‘não, a garota não’”, recordou.
“Foi como criar uma espécie de ‘statement’ [afirmação], de como na música, pelo menos, temos que fazer o que nos faz sentir livres e com vontade de permanecer. Senti que tinha que preservar a minha identidade, a minha vontade, a minha liberdade de ‘vou fazer aquilo que me apetecer’”, explicou.
A garota não escreve “aquilo que sente”. “Tenho este compromisso e esta responsabilidade comigo de escrever as coisas que sinto. Seja no amor, em relação a coisas a que assisto na televisão, ou em relação à vida da minha cozinha, que me alegra ou que me deixa triste. Mas sobretudo sentir isto, que a identidade tem que passar por uma observação que me sai do coração”, disse.
Nas 20 canções que compõem “2 de Abril”, canta sobre temas como ‘a tragédia’ do Mediterrâneo, a gentrificação, que também já afeta Setúbal, cidade onde ainda vive, ou a faceta ativista do artista chinês Ai Wei Wei, e faz uma homenagem ao músico José Mário Branco, convocando assim temas muitas vezes associados à chamada música de intervenção.
Mas, para A garota não, “a música de intervenção teve aquele período histórico [das décadas de 1960 e 70] e pertence àquele período histórico”.
Por isso, associa a música que faz mais “ao inconformismo”. “No sentido de não viver bem com o flagelo do Mediterrâneo ou com o que está a acontecer na Ucrânia. Inconformismo no sentido de nos deixarmos tocar pelo que é amargo e pelo que é doce na vida dos outros”, referiu.
Do ponto de vista musical, o primeiro álbum “Rua das Marimbas, n.º7”, editado em 2019, “era muito num registo de cantautor, com arranjos muito mais simples”.
Em “2 de abril”, a cantora quis “marcar o que vivia naquele bairro”. Cátia lembra o prédio onde vivia com a família como “um território multicultural”.
“No rés do chão vivia uma família cigana, no primeiro andar uma família angolana e nós. Por cima de nós viviam quatro irmãos, com os pais, que só ouviam música eletrónica. Depois havia uma particularidade: nos bairros sociais ouvia-se música em alto nível, o volume estava sempre no máximo, quase para mostrar quem tinha o aparelho de som mais potente”, recordou.
Naquela época, “subir as escadas do prédio era como entrar nas várias camadas de inspiração musical: o flamenco, os ritmos endiabrados angolanos e a parte eletrónica”. “E o meu pai era um lugar diferente de todos estes, porque ouvia Rui Veloso, Bob Dylan, Joan Baez, Zeca Afonso”, partilhou.
Cátia lembra que todos os ritmos que se ouviam nas várias casas do prédio a tocavam “de forma diferente” e “gostava deles todos”.
“Tentei trazer um bocadinho de todas estas linguagens para este disco, nos arranjos, na forma como produzimos, como vestimos as canções”, disse.
Embora seja um trabalho a solo, A garota não conta em “2 de Abril” com vários convidados, entre os quais a cantora Ana Deus, que lê um poema de Francisca Camelo, o ‘rapper’ Chullage e o baterista Fred Pinto Ferreira.
“2 de Abril” chega hoje às lojas, em edição física, mas só estará disponível nas plataformas digitais na sexta-feira.
O concerto de apresentação do álbum, no qual A garota não estará acompanhada pelos músicos Diogo Sousa e Sérgio Mendes, está marcado para 24 de abril, no Convento São Francisco, em Coimbra.
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