Nélida Piñon “teve sempre com a palavra [uma] relação de intransigente honestidade e valentia que caracteriza o escritor autêntico”, afirma a também escritora Inês Pedrosa no prefácio à reedição de “A Casa da Paixão”, de autoria da primeira mulher a presidir à Academia Brasileira de Letras.

O romance foi publicado, originalmente, em 1972, quando o Brasil vivia há oito anos sob ditadura militar.

No prefácio, Inês Pedrosa, que conheceu a autora brasileira, realça o contexto em que a obra foi publicada, reconhecendo em Nélida Piñon, na época com 35 anos, a capacidade de “transgressão [e] aventura nas escarpas da liberdade, coragem de encarar os abismos da existência humana”. Caso contrário, não valeria a apena escrever, acrescenta.

"Nélida teve sempre com a palavra essa relação de intransigente honestidade e valentia que caracteriza o escritor autêntico. Que um livro tão livre tenha sido escrito num país sufocado por um regime de terror, e escrito por uma narradora opiparamente omnisciente, com suficiente autoconfiança para dispensar toda e qualquer certeza, não é acontecimento de somenos."

Inês Pedrosa adverte que este “não é um livro para pessoas sensíveis”. “É, antes e depois de tudo – prossegue - um romance destemidamente erótico e sem biombos sentimentais. Um romance que faz da língua portuguesa uma experiência libidinosa. Um romance que pega no registo da narrativa clássica – introdução, desenvolvimento e clímax – para o fazer explodir, e, explodindo, recomeçar a pensar".

A protagonista é a jovem Marta, que faz parte da “formidável galeria de mulheres poderosas que distingue a literatura de Nélida Piñon”, como afirmou o escritor Rodrigo Lacerda.

Outros autores brasileiros realçaram a força desta narrativa. Pedrosa cita o poeta Carlos Drummond de Andrade que escreveu: “Que força de raiz em ‘A casa da paixão’, que esplendor de vida impetuosa e gritando por todas as palavras!”.

Segundo a sinopse da obra, avançada pela editora, o romance aborda a sexualidade feminina, Marta vive entre o desejo incestuoso do pai e a submissão da sua ama de criação, mas procura uma libertação.

Na opinião da prefaciadora “a emancipação sexual de Marta pode também ser lida como uma vingança da violação a que a mãe que não chegou a conhecer foi sujeita pelo seu próprio pai”.

O título “A Casa da Paixão” ganhou o Prémio Mário de Andrade, da Biblioteca Nacional do Brasil, como o melhor livro de ficção, em 1973.

Nélida Piñon é “uma das mais reconhecidas vozes da literatura brasileira contemporânea”, e “uma personalidade inolvidável, de imensurável amabilidade, delicadeza e perseverança”, afirmou a Universidade da Évora após a sua morte, em Lisboa, em dezembro de 2022.

Em 2018, a Universidade de Évora concedera-lhe o Prémio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra.

A Academia Brasileira de Letras qualificou-a como “uma das maiores representantes da literatura brasileira”.

Autora de mais de 20 livros, entre novelas, contos, literatura infantojuvenil, ensaios e memórias, tornou-se a primeira mulher, em 100 anos, a presidir à Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleita em 1989 na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda.

Nélida Piñon, que se estreou com o romance “Guia-mapa Gabriel Arcanjo”, publicado em 1961, recebeu o Prémio Internacional Juan Rulfo de Literatura Latino-Americana e do Caribe, em 1995, o que aconteceu pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa, assim como o prémio Bienal Nestlé, na categoria romance, pelo conjunto da obra, em 1991, e o da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e o Prémio Ficção PEN Clube, ambos em 1985, pelo romance “A República dos Sonhos”.

Em 2005 recebeu o Prémio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, por "Vozes do deserto".

Em 2020, dois anos antes de morrer, publicou “Um Dia Chegarei a Sagres”, romance ambientado em Portugal, com o qual ganhou o Pen Clube de Literatura.

Nélida Piñon licenciou-se em jornalismo em 1956 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tendo colaborado em jornais e revistas literários e sido correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris, e editora assistente de Cadernos Brasileiros.

A escritora tinha um vínculo estreito com Espanha, já que os pais e avós foram emigrantes galegos no Brasil. No início de 2022, foi-lhe concedida a nacionalidade espanhola.

Em 2005, recebeu o prémio Príncipe das Astúrias das Letras.