O primeiro romance de André Canhoto Costa, “Como sobreviver depois da morte”, é uma história fantástica e surreal que quer recuperar a memória de Portugal e combater a sua simplificação, através da história de uma família ao longo de gerações.
Formado em História e com alguns livros publicados sobre essa temática, André Canhoto Costa escreveu agora um romance, que transparece muito da sua formação, com detalhes históricos presentes, mas que conta uma história completamente ficcionada, porque “às vezes é a melhor forma de descrever a realidade”, disse o autor à agência Lusa.
“Como sobreviver depois da morte”, que vai ser publicado na quinta-feira pela Quetzal, é uma história passada numa pequena aldeia remota, chamada Sulfúreo, prestes a ser engolida por uma exploração de volfrâmio, na qual os vivos não morrem e os mortos estão vivos.
No centro da narrativa está a família Lustro-Urze, que, entre constantes aparições de defuntos, vive atormentada pela morte da matriarca, misteriosamente afogada num ribeiro há quatro séculos.
O romance acompanha a vida dessa família ao longo de gerações, concentrando-se na ascensão e queda de Ramiro Lustro, um caçador de leopardos e cultivador de camélias que recusa vender a terra à companhia mineira e, talvez por isso, sofra a visita dos mortos.
Ramiro deposita então todas as esperanças num dos netos, educado já pela república democrática, obcecado por descobrir a razão da incorruptibilidade dos corpos, decifrar o crime na origem da família e esclarecer o mistério do envenenamento das águas da montanha.
Trata-se de uma história de aparições, revoltas, traições, exílios, guerras constitucionais, a tragédia do progresso industrial, as conspirações históricas e a beleza natural de um mundo prestes a extinguir-se, mas é também a crónica de uma família cuja única propriedade é uma casa de pedra e uma camélia plantada num vale inóspito.
“O livro nasce de uma preocupação com uma certa simplificação que por vezes se faz da memória de Portugal, da memória que vamos formando sobre a História longa de Portugal, e há uma certa tendência para simplificar e para reduzir aquilo que foram o subdesenvolvimento, o falhanço da modernização e da construção de uma cultura urbana desenvolvida alinhada com a Europa”, disse o autor.
Na opinião de André Canhoto Costa, há uma tendência para caracterizar esse Portugal rural pobre, de uma forma “muito simplista” ou seja, por um lado, “romantizando esse passado e olhando de forma, às vezes, até paternalista, como uma vida que era pobre, mas era saudável, precisamente porque não havia industrialização e, por outro lado, há a tendência para destacar apenas o lado da miséria, da pobreza, do analfabetismo”.
“Portanto, nós andamos sempre aqui a oscilar entre estes dois extremos, e a verdade é que para descrever essa especificidade de Portugal, de um país europeu, mas que tem quase uma espécie de idade média que vem praticamente até ao século XX, ou mesmo até ao século XXI, só através da fantasia e da ficção”, explicou.
No romance, a história dos Lustro-Urzes ao longo de várias gerações “é também a história desta oscilação permanente”, entre sair da aldeia onde vivem, uma aldeia perdida nas montanhas, e abraçar a modernidade, o desenvolvimento, a escolarização, a alfabetização e uma vida mais alinhada com o progresso, ou permanecer nesse mundo antigo, que tem as suas contribuições, resistir ao tempo, enquanto se tenta compreender esse mundo em que se vive.
O autor sublinha que a ameaça a esse mundo antigo surge na forma de uma mina, que “é também um dos grandes símbolos da exploração científica, de alta produção industrial”.
O romance “procura também quebrar com essa simplificação, com essas leituras extremas, com essas dicotomias muito vincadas”.
Com a evolução, a industrialização, a revolução democrática, problemas como o analfabetismo começaram a ser resolvidos e deixaram de ser o flagelo que foram, mas André Canhoto Costa lembra que a história “é construída pelos vencedores” e há uma tendência para esquecer que nessas culturas ancestrais “também existiam ferramentas de conhecimento”, como os moinhos, as paredes de pedra, a extração máxima da produção dos solos, a criação de animais ou a capacidade de interpretar o clima, exemplificou.
Perante o risco de apagamento da memória do passado, das tradições, das crenças e superstições, André Canhoto Costa sentiu que era preciso “fixar todo este universo”, que resistiu durante séculos, que foi passando de geração em geração e que “só agora começa a ser destruído, quando essas pessoas que pertenciam a essa cultura desaparecem”.
“Eu acho que esse é um dos maiores desafios do livro”, afirmou, salvaguardando que procurou passar para a história uma “visão objetiva”, que não fosse nem uma crítica paternalista, nem um “elogio ou romantização de um estilo de vida que tinha também os seus limites”.
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