O Tejo estava mesmo ali à mão de semear. A lua batia-lhe, cuidadosamente, amarelando-o. E Lisboa cabia-nos dentro dos olhos, tanto que nem sabíamos por onde começar a fitá-la. "Aqui mora o fado". Era este o cenário do Palco Caixa, o palco principal do Festival Caixa Alfama, uma autêntica aldeia do fado. São dois dias de fado, com 40 fadistas, espalhados por dez palcos. Fica o sentimento de frustração por não nos podermos auto-clonar para assistir a todos os concertos. Ainda assim, foi gratificante ver tamanha multidão e tão raros os espaços por ocupar.
Na noite de ontem, coube a Gisela João a tarefa de abrir o pano pela primeira vez. Fê-lo de forma exímia, graças ao seu timbre imperial, que constrastava por completo com o tom mais ameninado das palavras não cantadas. Durante cerca de uma hora, a jovem fadista fez do corpo uma extensão das cordas vocais: aquilo que estas não conseguiam transmitir autonomamente, o corpo encarregava-se de o ilustrar. Ajoelhava-se, dava sapatadas no estrado, cerrava os punhos com um olhar felino. Não demorou muito tempo para que se desfizesse dos saltos altos: «desculpem, mas sinto-me desconfortável». Ficou atónita, e até sem jeito, pela forma como o púbico se mostrava empolgado com a sua atuação. Arrancou, sempre que quis, as palmas tricompassadas que o fado corridinho tanto exige. "Viva Alfama!", exclamou na despedida. Nota nove, de zero a dez.
Ana Moura levou-nos aos fados, onde nós sossegamos as desventuras do amor a que nos entregámos. O brio e o arrojo valeram-lhe as muitas ovações e a participação do público em vários refrães, como foi o caso dos "Búzios", a peça que faltava a um puzzle que já contava com o aroma fresco da maresia. Na maioria dos casos, a diferença não tem que ver com o ser-se bom ou mau fadista, porque, felizmente, maus fadistas não temos. Depois, os bons são subdivididos em dois: os que causam arrepios e os que não causam. Com Ana Moura, nem a pele dos mais insensíveis está a salvo. Deixa-nos com o coração nas mãos, das vezes que coloca a voz quase ao jeito da perene Amália. «Finalmente alguém tem a ideia de fazer um festival com este conceito», disse em homenagem a Luís Montez, da Música no Coração. Mais tarde, ausentou-se por instantes, deixando-nos com um momento instrumental, também ele arrepiante, onde a guitarra portuguesa de Ângelo Rodrigues arrebatou a plateia. É claro que o "Desfado" estava reservado para o final. Ana Moura quase não teve de pegar no microfone. A multidão identificou-se com a composição bipolar e antitética de "Desfado".
Com uma toada mais monocromática e menos aparatosa, Camané fechou a noite, debaixo dos aplausos de um público que, perto do fim, já mostrava sinais de alguma sonolência. Culpa da hora avançada, nunca do aguerrido Camané. Confessou desde cedo que não tinha por hábito cantar temas já antes protagonizados por grandes nomes do fado. «Já não há nada a acrescentar», afirmou humildemente o fadista lisboeta. Ainda assim, pediu licença para entoar palavras emprestadas de Amália e também do poema "Presságio", de Pessoa Ortónimo. O amor quando se revela não se sabe revelar. Desfilou a sua já longa experiência, sempre destacando a excelência dos músicos que trouxe consigo. Nas bancadas alguém gritava por "Sei De Um Rio". Camané ainda disfarçou uma despedida, mas regressou prontamente e fechou mesmo a cantar o rio em que as únicas estrelas nele sempre debruçadas são as luzes da cidade. Esse rio foi o Tejo e as luzes emanavam de Alfama.
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