Após percorrer a fila de fãs à espera para entrar que envolvia a sala de espetáculo, o SAPO On The Hop chega ao local onde se iria recuar 10 000 anos. O cenário inclinado da Aula Magna às 21h50, hora em que entramos, começa a compor-se à medida que se ouvem os grandes hits de décadas passadas.
A música antiga e relaxante que se ouve prepara-nos para o recordar do álbum de José Cid mais aclamado pela crítica: "10 000 anos depois entre Vénus e Marte". A ansiedade aumenta assim que entram cada vez mais fãs saudosistas da ‘mãe do rock português’ (isto se o Rui Veloso for o ‘pai’). Surpreendentemente, ou não, o público é transversal: lá de cima, onde o SAPO On The Hop esteve sentado, conseguiu-se ver carecas e cabeludos, novos e velhos, estilos extravagantes e estilos mais corriqueiros, e certamente jovens mais entusiastas com o disco do que com a carreira musical de José Cid.
Foram galáxias de gerações juntas para ouvir a luz interestelar de Cid com um sentido musical muito apurado, 10 000 depois. Público heterogéneo para assistir a uma homogénea obra de arte de rock psicadélico, nem que seja pela aclamação generalizada (foi eleito um dos álbuns de rock progressivo do século passado pela Billboard). Ainda antes de começar o espetáculo, já se ouve refrãos trauteados pelos fãs mais afincados que não conseguem esperar pelo início do concerto, ou esperam ansiosamente.
Meia hora depois do previsto, e depois de o público chamar pela primeira vez por José Cid, o cantor português aparece finalmente. As luzes apagam-se e os aplausos multiplicam-se. Do nada, um fã grita: “Eu quero chorar!” Era só esperar mais um bocadinho. Cid dá as boas-vindas ao público – “Ainda bem que vieram” – e diz a palavra que mais repetiu durante toda a noite: “fantástico!”.
Assim que as luzes acendem, apercebemo-nos que a estética do palco não cativa, mas que também não foi isso que nos trouxe cá; a vinda deve-se aos sons futuristas, à mistura entre sons eletrónicos e o rock espacial, e o rock sinfónico, supracitado durante todo o concerto, onde Cid arrisca mas petisca (ele e o público).
A primeira música é dedicada ao seu produtor, Mário Martins, e começa com o piano, que tão bem caracteriza José Cid, acompanhado por luzes azuis que criam um ambiente gelado e monótono. A batida intensifica-se, as luzes aumentam e, agora sim, vemos José Cid igual a ele próprio: simples em palco, com os seus óculos escuros, sem medo e com a atitude certa para o concerto em questão. “Ao longo desta estrada / Eu sinto-me só / (…) / Não sei voltar atrás”, ouve-se em lamento e revolta. Do frio para o quente, o ambiente compõe-se e Cid levanta a voz com um daqueles apontamentos vocais que podia definir facilmente o que é ser épico. Na Aula Magna, base para um ofegante público, não se vê cadeiras vazias, só cabeças. “Sigo o meu caminho / mas não sei para onde vou” - termina a primeira investida da noite, “Vida (Sons do Quotidiano)”, procedida de um forte aplauso.
Altura para uma menina subir ao palco e pedir para acreditarmos no amor e na paz entre os homens. No ecrã ao fundo está uma imagem de Cid em criança, catalisadora de um dos momentos de maior nostalgia da noite. Para ajudar à festa, o cantor começa os ‘oh oh oh’ galopantes que percorrem a noite toda. Se houvesse dúvidas sobre a voz de José Cid, estas dissiparam-se. E assim está dada a premissa para o sonho galático que o álbum metaforiza, mas antes temos de ouvir outros temas, como os novos que José Cid se prepara para lançar no próximo ano. “Onde, Quando, Como, Porque Cantamos Pessoas Vivas”, com letra de José Jorge Letria, continua o regresso ao passado – e mereceu o primeiro aplauso a pé -, mas esta viagem é logo interrompida por um antecipar de canções que serão lançadas em 2015. Este vai ser um novo trabalho de rock sinfónico, intitulado “Vozes do Além”, explicou José Cid ao público, com letras de Sophia de Mello Breyner e Natália Correia. “É música – aquilo que mais gosto de fazer”, apregoou. Cid apresenta três dos temas do álbum – onde se ouve: “mortos gastos voltaremos a viver livres como animais” - e logo se vê a predominância de baladas cobertas por um ambiente celestial.
Contudo, pouco depois das 23h15, José Cid começa o verdadeiro espetáculo, aquilo pelo que todos esperavam: a viagem espacial. “Estão prontos para uma viagem? Esta é uma homenagem ao passado e ao que vou lançar no próximo ano”, revela. O alinhamento do álbum é cumprido. Cid grita: “Aí vai”; tudo começa com “O Último Dia na Terra” e a voz de Cid torna-se a estrela do espaço. O público vai literalmente ao rubro; a imagem do álbum dá fundo ao palco e as primeiras ondas eletrónicas invadem a Aula Magna. O som é agora ainda mais completo, propício para a evasão, a imaginação e a comemoração que “10 000 anos depois entre Vénus e Marte” nos oferece. Um olhar rápido pela plateia dá para reparar como ninguém fica indiferente: a mão, a perna, a cabeça – tudo está no ritmo certo. Segue-se “O Caos”: “Ser como nem porquê / A vida morre de fronte / E a morte é aquilo que se vê”, uma letra melancólica que chega a ser peculiar quando Cid canta “não se ouviu um grito”, e o público responde espontaneamente com um. Estavam atentos.
Com “Fuga Para o Espaço” chegou um dos momentos altos da noite. Ninguém ficou indiferente ao refrão orelhudo, cantarolado em uníssono por todos: “Na cabine central / Emiti um sinal / No ecrã tudo andar / Tudo indica normal”. Depois de um tema mais popular, vem a introspetiva canção “Mellotron, O Planeta Fantástico” que nos leva até ao fundo da essência do ser humano: “Eu não sou daqui / Da multidão fugi / De que sonho acordei? / Só eu sei”, letra bem acompanhada por um instrumental que termina em apoteose, deixando os cardíacos à rasca. Não só aqui, como em todo o concerto, a sensação era de estarmos a ouvir ruídos alien que nos envolviam com o infinito e a imortalidade.
Contudo, o grande momento chegava sem anúncio: a música que dá nome ao álbum dava agora ar de sua graça no palco da Aula Magna. A voz lírica da corista feminina emancipa-se e traz até nós as dúvidas existenciais: “Onde recomeçar outra civilização?” – a nós pareceu-nos que a Aula Magna era um ótimo lugar. A estrofe - “Podes ver / 10.000 anos depois / No ecrã do radar / Entre Vénus e Marte / Um planeta vazio / À espera que o descubram / Onde recomeçar / Outra civilização” – preenche a música toda, e chega. Também sem anúncio, o público canta este hino e os arrepios começam a chegar aos mais sensíveis. Os “oh oh oh” épicos multiplicam-se novamente, e a emotividade atinge o cume. A cada repetição mais um significado, a cada repetição mais um momento de transcender a realidade, de ver ou sentir para além daquilo que nos chega através das sensações.
Seguiram-se “A Partir do Zero” e “Memos” que nos trazem de volta à Terra, mas a mistura de sonoridades apaixonantes continua lá. Houve sempre tempo para o instrumental valer só por si, mas foram as cadências das vozes que apaixonaram o público. Vocalmente pareciam ser mil vozes num espetro tão perfeito que resultava. O ambiente espacial foi sendo criado através das vozes, das imagens, das luzes que davam a sensação de movimento quando na realidade tudo ficava parado.
Cid acaba por se despedir: “Boa viagem, qualquer que seja a galáxia”. Porém, o público não para de amplificar o “oh oh oh” tradicional. Altura para José Cid confessar que esteve a semana toda doente, e que por isso estava ali com muito esforço. Ainda assim, o sarcasmo estava lá: “Não temos nível para o Rock In Rio; nem para o palco secundário”. A dica estava dada.
O fim só poderia ser com “O Caos” e, claro, com “10 000 anos entre Vénus e Marte” que levou todo o público novamente às nuvens, a outra dimensão. Terminado o concerto, o difícil foi pousar novamente, mas certamente que todos os que lá estiveram pousaram mais inspirados. Para a memória ficará o DVD gravado naquela noite que vai poder ser ouvido 10 000 anos depois entre Vénus, Marte ou outro planeta à escolha. Anos-luz de qualidade perduram.
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