A premissa era simples: escrever três ou quatro páginas sobre a Póvoa de Agustina Bessa-Luís para incluir numa antologia, mas as ideias foram-se desenvolvendo na cabeça de Joana Bértholo e tomaram a forma de uma novela intitulada “Augusta B. ou As Jovens Instruídas 80 anos depois”, que se autonomizou e que vai ser lançada hoje na Feira do Livro de Lisboa, pela editora Caminho.

Tudo começou em 2023 no Festival Corrente d’Escritas, na Póvoa de Varzim, durante uma residência de escrita em que participaram diferentes escritores, que percorreram os vários circuitos tocados pela vida da Agustina, e a quem foi proposto redigir um pequeno texto simples para fazer parte de uma publicação coletiva.

“O que aconteceu foi que, na resposta a esse enunciado, o meu texto ganhou uma espécie de vida própria e uma extensão, e eu comecei a perceber que não fazia sentido publicá-lo, estando junto com outros textos de três ou quatro, que era mais ou menos a expectativa de contribuição de cada um”, contou a escritora à Lusa, explicando que pediu autorização para sair do projeto e ganhar autonomia.

O ponto de partida para a história foi um anúncio publicado por Agustina Bessa-Luís, aos 22 anos, no jornal Primeiro de Janeiro, no qual se apresentava como “jovem instruída” que desejava corresponder-se com uma pessoa “inteligente e culta”.

Este pequeno episódio, ocorrido há 80 anos, e que deu origem a cerca de 30 cartas de resposta, uma das quais daquele que viria a ser o marido de Agustina Bessa-Luís e pai da sua filha, sempre fascinou Joana Bértholo, que pegou nele e teceu uma teia de relações com o presente, através de duas amigas de 22 anos: uma ávida leitora, de nome Raquel, e uma “expedita na abordagem virtual”, a Augusta que dá título ao livro.

“Sempre tive um fascínio por este anúncio. É um bocadinho uma espécie de mito, uma mitologia à volta da figura da Agustina e deste anúncio. Eu não conhecia os detalhes, ou seja, a formulação, o que tinha saído no Primeiro de Janeiro, nem que ela tinha colocado um anúncio tão nova, até o ler na biografia de Isabel Rio Novo, que acho que fala disso de uma maneira bastante detalhada”, contou.

Um dos aspetos que mais intrigou Joana Bértholo foi o facto de naquela altura as raparigas não fazerem aquele tipo de coisas, sobretudo da classe social de Agustina Bessa-Luís, o que constituiu uma espécie de “ato disruptivo”, que hoje em dia “faz logo pensar no Tinder e outras aplicações de encontros”.

Na história de “Augusta B.”, as duas jovens propõem-se replicar o gesto de Agustina Bessa-Luís 80 anos depois, e acabam por enfrentar dificuldades e peripécias, em paralelo com as suas reflexões sobre as aplicações de encontros e as modalidades contemporâneas de procura do outro.

O caminho feito por Joana Bértholo foi o mesmo que fizeram as jovens, quando se decidiram a publicar o mesmo anúncio no jornal e ver qual seria o resultado.

“Isto começou por eu simplesmente tentar pôr de novo aquele anúncio num jornal e o que aconteceu foi que mostrou-se tão difícil… ou seja, comecei a ser rejeitada”.

Primeiro tentou o Público e depois o Expresso, e em ambos os casos recebeu respostas a informá-la que aquele tipo de anúncios não se coadunava com a linha editorial dos jornais.

“Os e-mails que eu reproduzo [na história] são os e-mails que eu recebi. Eu comecei a ser rejeitada por uma e outra plataforma noticiosa e comecei a pensar, comecei a achar aquilo muito estranho, porque, apesar de tudo, o anúncio não tem nada de mal, é muito pueril, e então foi aí que eu senti que havia ali qualquer coisa interessante para ser narrada”, recordou, especificando que só começou “à procura do conto, depois de começar a receber as respostas dos jornais”.

No entanto, apesar de partir das suas próprias peripécias, não lhe interessava “fazer textos em primeira pessoa ou de natureza jornalística”, razão por que decidiu “criar aqueles alter egos, que são a Augusta e a Raquel”.

O anúncio acabou por ser publicado no Correio da Manhã, “ao lado daqueles anúncios, todos de uma natureza muito mais obscena”, cuja página é reproduzida no livro, da mesma forma que se reproduz a página do jornal em que foi publicado o anúncio de Agustina Bessa-Luís.

“Quando eu vi aquela página, o contraste entre a natureza do anúncio da Agustina e tudo o resto que o rodeava, eu achei aquilo tão especial, que quase nasceu um conto à volta de daquela página do jornal”, recordou a escritora.

Paralelamente a todo este enredo que na novela é protagonizado pelas duas jovens, desenvolvem-se outras tramas amorosas, através das aplicações de encontro, que nos dias de hoje são o equivalente aos anúncios nos jornais de então.

Como aponta Joana Bértholo, hoje em dia, para a sua geração, entrar nestas aplicações e estabelecer relações a partir delas – e até de outras redes sociais, não especificamente direcionadas para encontros – é uma coisa absolutamente banal e que está presente nas conversas mais corriqueiras.

“As pessoas falam muito de relações, de relações amorosas, de conhecer pessoas, e já é um bocadinho inescapável a ideia de que de ‘ele conheceu alguém no Tinder’ ou ‘a pessoa que ele conheceu no Bumble deixou de lhe falar’”, que é um bocado o que acontece com as protagonistas na história.

Ao longo da novela, e porque as jovens se vão adentrando cada vez mais na vida e na obra de Agustina Bessa-Luís, vão surgindo, intercalados com a narrativa, excertos de textos da escritora, todos devidamente assinalados no final do livro.

Principalmente Augusta, que não gostava nem tinha por hábito ler, mas procurava incessantemente relações através das aplicações digitais, começa a desenvolver um interesse e uma conexão com Agustina, com quem se identifica emocionalmente, a ponto de travar um diálogo interior com ela.

À medida que se vai deparando com as dificuldades de publicar o anúncio e de ter de se expor (coisa que não acontece com as aplicações, já que o dispositivo lhe confere a devida privacidade), Augusta começa a interpelar Agustina, com questões como “de onde te vinha a garra?”, “sentiste receio de não teres resposta?” ou “como lidaste com a espera?”.

A essência da história desta breve novela de 97 páginas quase pode ser resumida numa conclusão a que chegou Augusta, de que “muitos destinos se entrelaçam na mais banal folha de um jornal”.