“A génese deste livro não difere da dos anteriores, ou seja, trata-se de poemas que foram sendo escritos ao longo de meses, alguns dos quais poderiam ter sido integrados no livro 'Errático' saído em agosto na Tinta da China, mas que, por várias razões ficaram para trás, a que se juntaram outros poemas escritos posteriormente”, contou a autora à Lusa, a propósito do lançamento do seu novo livro, desta vez publicado pela não (edições).
O novo livro de Rosa Oliveira é lançado num formato diferente dos anteriores, apresentando-se numa edição de 40 páginas agrafadas (formato conhecido como plaquete), com capa e desenhos de João Concha.
Nesta sua nova obra, a poeta mantém-se fiel aos temas de sempre, como sejam o tempo, a memória, as relações com outras artes, as pessoas e os lugares que por ela passam e passaram, a História e os seus fazedores, tudo aquilo que a inquieta e a move.
E como sempre, também, o seu livro só ganha uma personalidade no final, porque a autora nunca parte para a escrita com a ideia de um esqueleto poético preconcebido, vai montando a estrutura enquanto escreve.
“Eu não traço antecipadamente o perfil de um livro: ele vai-se construindo à medida que os poemas se alinham, digamos, numa arquitetura mental minha. Como tal, não há um tema dominante, preexistente, mas alguma ligação que lhes encontro a posteriori e que uso para alinhar ou agrupar poemas”, explica.
Contudo, o título escolhido para este seu novo livro marca uma diferença para com as obras anteriores, editadas pela Tinta-da-China, todas elas com títulos sintéticos: “Cinza” (2013), “Tardio” (2017) e “Errático” (2020).
“Desvio-me da bala que chega todos os dias” é a citação de um verso do poema “vacilante”: "querem falar de sinceridade? / pinto quadros abstratos / os campos são sempre castanhos / e desvio-me da bala que chega todos os dias / dá um trabalhão ser invisível / mas gosto de estar na estrada onde ninguém passa”.
“Curiosamente, é um longo título para um livro relativamente pequeno, uma plaquete melhor dizendo. Mas este formato não retira importância ao livro, pois nele estão concentrados poemas que considero determinantes no contexto do que escrevi até agora”, explica Rosa Oliveira.
Neste livro, a poeta procurou também explorar novas formas, levando a cabo “uma pequena experiência gráfica que é a de editar um poema um pouco à parte e apresentado horizontalmente”, revelou, acrescentando que, para tal, contou com a “cumplicidade do editor João Concha”.
“Trata-se de um poema muito importante para mim em que tento, numa espécie de hino anti-hino, fazer o balanço da escrita e da vida sob a forma de uma interrogação geral quanto ao grau de crueldade que uma e outra podem atingir”, confessou a escritora.
Embora o livro tenha sido editado em plena pandemia, quando se completa quase um ano desde que a propagação da covid-19 obrigou a uma mudança do estilo de vida, forçando um certo isolamento e confinamento, Rosa Oliveira afirma que essa condição não teve “até agora influência visível” naquilo que escreve e no modo como escreve, sobretudo porque o seu estilo de vida não se alterou significativamente.
“Estou em casa, que é onde já costumava estar a maior parte do tempo, estou a ler, a escrever, a ver filmes, a ouvir música, a falar com as pessoas por telefone - tudo isto era já a minha vida habitual”.
O que a pandemia lhe trouxe de novo foi o facto de dar aulas a partir de casa, o que confessa agradar-lhe muito e mostrar que tem “uma opinião muito diferente da corrente que tem horror às aulas à distância”.
Numa perspetiva mais negativa, aponta o facto de “não poder viajar nem estar com pessoas mais frágeis” como o seu pai, que está em Viseu.
Finalmente, o outro aspeto que a pandemia trouxe de novo é “esta ameaça geral e invisível que nos tolhe os movimentos mais espontâneos e nos mostra o quanto somos impotentes perante os perigos que nós próprios, humanos, lançamos sobre nós e sobre este pequeno e instabilizado planeta”, considerou Rosa Oliveira.
Simultaneamente com a publicação de “Desvio-me da bala que chega todos os dias”, a editora brasileira Corsário-Satã, uma “editora underground de poesia”, como se designa a si mesma, lança uma antologia de Rosa Oliveira, intitulada “Natureza quase viva”, que se encontra em pré-venda.
Esta antologia reúne poemas dos seus quatro livros, e é o primeiro da autora no Brasil, destaca a editora no seu ‘site’.
Na badana do livro, a poeta Marília Garcia descreve que “o tempo, em suas várias manifestações, parece atravessar esta antologia de Rosa Oliveira e se impor, assim como aquele fio plástico no meio das ruínas de Pompeia”.
Nesta poesia encontra-se a referência a “relógios, calendários e formas de medir a duração das coisas” e também a “muitos passados acumulados, restos, ruínas, cinzas: o que fica da memória, certa frase que perdura, anos de cheiro acumulado, ou a luz de uma estrela que já morreu e vem do passado até nós”.
“Além do tempo pausado e das maneiras de capturar o presente, esse ‘tempo inexistente’, um olho a piscar, o instante em que uma gota d’água pendurada na torneira cai”, acrescenta.
Também o poeta Leonardo Gandolfi alude ao tempo na poesia da autora portuguesa: "Voltando ao drama do tempo, vale dizer que ele é um dos grandes responsáveis pelos processos de subjetivação que ganham corpo na poesia de Rosa Oliveira”, e todos estes poemas “têm em comum a submissão do corpo ao intempestivo, à duração ou simplesmente à agenda”.
Rosa Oliveira nasceu em Viseu, em 1958, e vive atualmente em Coimbra.
Publicou os ensaios “Paris 1937” e “Tragédias Sobrepostas: Sobre ‘O Indesejado’ de Jorge de Sena", foi leitora na Universidade de Barcelona e é professora no ensino superior politécnico.
“Cinza”, o seu primeiro livro de poesia, foi galardoado com o Prémio PEN Clube Primeira Obra, e “Tardio”, o segundo, foi nomeado para o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores, foi finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa e venceu o Prémio Literário Fundação Inês de Castro.
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