André V. Neves (Maze) e Vinicius Terra (Terra) conheceram-se há mais de dez anos numa vinda do segundo a Portugal para dar alguns concertos. Depois disso, Maze foi ao Brasil participar no festival Terra do Rap, que tem curadoria de Vinicius, e foram mantendo o contacto, digital e pessoalmente, criando uma relação que mais do que de trabalho passou a ser de amizade, recordaram ambos em entrevista à agência Lusa.
O rap (sigla para ritmo e poesia, em inglês), que ambos fazem há mais de 20 anos, juntou-os. Já a ideia de publicarem um livro em conjunto surgiu por causa de um espetáculo na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, em junho de 2022.
“Durante o processo de ensaios trocámos muitas ideias, e falámos sobre a nossa vida, o nosso ponto enquanto MCs [Mestres de Cerimónias] já de 40 anos, e sobre a nossa relação com a palavra. E acho que é nesse momento [que a ideia nasce]”, contou Maze durante a entrevista, em Lisboa.
Terra destacou a simbologia do momento: “Estar na casa onde Fernando Pessoa viveu os seus últimos anos e [o espetáculo] ter sido no dia de Camões, 10 de junho”.
O ‘rapper’ brasileiro fala no português como uma língua “potente”, mas também “moderna”, que, “também por ser moderna, aceita outras variações linguísticas: o português do Brasil é um outro português, o português de Angola, o português de Cabo Verde”.
“Fronteira-Mátria”, editado pela Urutau, tem dentro uma “fronteira imaginária entre Brasil e Portugal”. “É uma questão fraterna nossa, de dois irmãos, contemporâneos da cultura ‘hip-hop’, um em Portugal e outro no Brasil. Pensar nessa fronteira não com uma zona de conflito, e muito menos uma zona de confronto, mas uma zona de encontro e conforto - então por isso ‘Fronteira-Mátria’, por pensar que a fronteira é a nossa mãe”, explicou Terra.
O título do livro pretende também “ressignificar o conceito de nação”. “Se pensarmos no masculino pátria, no conceito, ele é austero. E se fossemos mátria, se Portugal fosse uma mátria? Se o Brasil fosse uma mátria? No sentido feminino mesmo, da gestação, de gerar um ser, de acalentar um ser, de fazer crescer um ser. E não uma figura clássica do paterno austero”, questionou.
Terra acredita que se está no “exato momento” de “ressignificar isso tudo, tanto no Brasil quanto em Portugal, ou seja no mundo, de repensar mesmo”. “Repensar as questões de reparação histórica, as questões de fronteiras, de nação, de empoderamento, de inclusão, etc.. Foi esse grande desafio de transpor todos esses sentimentos contemporâneos em versos. Eis aí o nascimento de ‘Fronteira-Mátria’”, afirmou.
Maze corrobora que os temas nomeados por Terra “estão todos” nas páginas do livro, que inclui palavras “escritas há muitos anos, algumas há décadas, algumas já musicadas nos temas de ambos, outras que nascem quase de uma correspondência transatlântica, que vai acontecendo à medida que este ‘Fronteira-Mátria’ vai ganhando vida”.
“Fronteira-Mátria” aflora ainda outros temas, “com recortes diferentes”, porque a abordagem dos dois autores à palavra “é completamente diferente”. “Se calhar alguns são mais direcionados ao estudo da língua, dessa língua mátria que nos une, outros mais existencialistas, que vêm dessa circunstância de sermos pessoas diferentes e abordarmos a palavra de forma diferente, mas complementando-nos”, referiu Maze.
Apesar dessas e de outras diferenças – “porque até graficamente os poemas são diferentes: os espaçamentos, o respirar, o silêncio no texto” -, após ler o livro “várias vezes”, Maze acredita que este “ficou coeso”.
Os poemas que assinam em conjunto foram escritos com um Oceano pelo meio. “Muitas vezes era uma chamada de telemóvel, de vídeo, para uma leitura rápida, ou um áudio. É usar a tecnologia a nosso favor”, recordou Terra.
O desenvolvimento dos poemas por vezes acontecia na base da “provocação, quase”. “Aconteceu isso algumas vezes, o Vinicius mandar e dizer ‘está aqui a minha parte, agora desenrola a partir daqui, continua esta resposta’. E eu fiz o contrário também, e este conceito de correspondência moderna é algo que vem acontecendo na literatura ao longo dos séculos, estamos quase a dar uma continuidade a essa troca entre autores que sempre aconteceu e que sempre foi natural no meio literário”, disse Maze.
Nesses poemas, ‘mistura-se’ o português de Portugal com o do Brasil. A esse propósito, Terra gosta de lembrar uma frase de José Saramago: “Não há uma língua portuguesa, há línguas em português”. “Falar bem o idioma, também é ser poliglota dentro dele”, disse.
Para Terra “é uma felicidade” pensar que ele e Maze estão “a estrear uma ideia de cooperação na literatura entre Brasil e Portugal”, sobretudo na geração dos dois, “muito datada pelo liricismo, pelo trato com a palavra”.
“Os ‘rappers’ dos anos 1990/2000 tinham muito essa preocupação estética com a palavra, com a mensagem. E dentro dessa ideia de mensagem, muitos dos nossos contemporâneos também estão a reivindicar o seu lugar na literatura. Mas não é só uma reivindicação nossa, as feiras literárias, os simpósios e académicos, doutorandos, mestrandos procuram muito e visitam muito o nosso trabalho para criar interfaces”, recordou Terra.
Além disso, tem havido “poetas da música a terem o seu valor [reconhecido] na literatura”.
O livro é assinado pelos poetas André V. Neves e Vinicius Terra, e também por MC Maze e Terra.
“O MC é um poeta. O poeta abrange todas as restantes nomenclaturas que se possa incluir aí: o artista de ‘spoken word’, o artista de ‘slam poetry’, o MC, o ‘rapper’. Isso são tudo sucedâneos do poeta, ou versões diferentes do poeta. O poeta a posicionar-se de formas diferentes. O poeta é mais abrangente e é sempre primordial. Aqui estão os poetas, mas estão os poetas enquanto MCs também”, defendeu Maze.
Terra lembrou que “se o rap é ritmo e poesia, tem que pensar-se que o rap é uma modalidade da oralidade da poesia”. “É um tipo de poesia, é uma poesia ritmada, coloca a poesia no ritmo, ritmo e poesia”.
Questionados sobre se quando leem os poemas ouvem internamente as batidas do rap, Maze referiu que “alguns têm um ritmo muito próprio”.
No livro, há poemas que, graficamente, são “blocos de textos, retangulares, que são a estrutura normal da métrica do rap, porque o número de sílabas é mais ou menos o mesmo em cada verso”, assumido “propositadamente para que se perceba ele foi consumido assim”, que “foi escrito para ser lido num tempo, num 'BPM' específico”.
“Noutros textos há essa desconstrução. E eu percebi que o Vinicius fez a desconstrução desse ritmo em muitos raps dele que estão aqui, então há diferentes perspetivas e abordagens desse mesmo ritmo”, disse.
Embora as apresentações oficiais de “Fronteira-Mátria” estejam marcadas para depois do verão, no Festival Literário Internacional de Óbidos (FOLIO), em Portugal, e na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), no Brasil, os dois já fizeram algumas leituras ao vivo do livro, nas quais perceberam que este “é para ser lido, não para ser recitado”.
“Acho que é essa a grande beleza também. A beleza de ser poeta, de ter essa grande riqueza e abertura de ser algo”, referiu Terra.
“Fronteira-Mátria” chega às livrarias na terça-feira. Até lá está em pré-venda no ‘site’ da editora Urutau.
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