Entrou no palco de mota, disse adeus cerca de uma hora depois e garantiu ter vivido um dia especial. No seu regresso à Cidade do Rock, quatro anos após ter atuado pela primeira vez no Parque da Bela Vista, Anitta apresentou-se com estatuto reforçado entre as maiores estrelas pop da atualidade e foi acolhida por um público à medida. Não será exagero dizer que era dos concertos mais aguardados deste verão em palcos nacionais, ao ponto de ter ajudado a esgotar a última data do Rock in Rio Lisboa (e a única desta edição a atingir esse patamar).
Na bagagem, a brasileira trouxe uma coleção de êxitos numa lógica que, se não foi a de tudo para a toda a gente, revelou um ecletismo assinalável: do baile funk ao reggaeton, de acessos de rock eletrónico a uma "Girl From Rio" faz a ponte entre a casa e o mundo, herança de "Garota de Ipanema" que troca o português pelo inglês e aceita outras contaminações sonoras.
Os fãs, visivelmente desejosos de aderir sem reservas à celebração, não demoraram a acompanhar os passos da cantora e dos muitos bailarinos que, à semelhança dos músicos (?), viram reduzido o tempo de antena nos ecrãs laterais e ao fundo do palco - e quem estivesse a uma distância considerável do centro dos acontecimentos (uma fatia significativa dos 80 mil presentes) tinha de recorrer a eles para seguir os movimentos dos artistas. Como a realização optou quase sempre por dar prioridade à cantora, e particularmente ao seu abanar de rabo, acabou por ignorar muitas vezes a sua equipa -que, de resto, nem foi apresentada, tirando a convidada MC Rebecca em "Combatchy".
Os interlúdios onde Anitta trocou de indumentária foram a única exceção, com direito a demonstrações de capoeira dos bailarinos, mas o principal argumento da cantora não foi nem a voz (muitas vezes a deixar suspeitas de playback), nem a dança (sem coreografias especialmente criativas), nem os momentos em que se dirigiu ao público, a quem repetiu "Vocês são foda" e garantiu estar emocionada pelo regresso.
Também confessou estar a viver um dos melhores dias da sua vida, partilha estranha tendo em conta uma atuação tão mecânica, sem margem para grande espontaneidade ou momentos de comunhão memoráveis. Nem para grandes provocações, por muito que as letras e sonoridade de singles como "Vai Malandra" ou "Envolver" se apresentem como marotas e libidinosas. A menos que alguém fique chocado com o constante abanar de rabo em 2022 (recordamos que Madonna já é sexagenária), promovido a maior acontecimento do espetáculo, este sortido de pop urbana tem pouco de transgressor (sim, houve um tímido beijo na boca entre a cantora e uma bailarina) e muito de derivativo e pasteurizado.
Pontualmente ouviram-se alguns instrumentais fervilhantes, sobretudo os mais próximos do baile funk, mas muito longe da crueza, suor e desbragamento com que os conterrâneos Tetine ou Bonde do Rolê, entre outros que ajudaram a exportar a sonoridade, faziam a festa há mais de dez anos. Anitta tira tantos temperos à receita original que acaba por jogar pelo seguro, o que não impediu que "Sua Cara", "Modo Turbo" ou a inevitável "Show das Poderosas" (servida no final com cobertura de guitarra elétrica) tivessem correspondido e pleno às expectativas de muitos dos que esperavam este concerto há meses.
A fechar a noite no Palco Mundo, depois de os HMB e Jason Derulo também terem passado por lá, Post Malone apresentou-se sozinho e contou ainda com um recinto muito concorrido para ouvir as canções do recente "Twelve Carat Toothache", o seu quarto álbum, editado este mês. Envergando uma t-shirt dos filmes "O Senhor dos Anéis", o norte-americano atuou para um público maioritariamente adolescente, que não se cansou de entoar muitos dos seus temas. Como quem está rodeado de amigos, o cantor e rapper bebeu e fumou, mostrou-se entusiasmado pela companhia e não temeu enfrentar um palco despido.
Disparando palavras entre música pré-gravada, excetuando ocasionais momentos na guitarra acústica (que acabou por destruir, num suposto acesso de rebeldia a juntar aos palavrões regulares), participou ainda num dueto virtual com Ozzy Osbourne com pirotecnia a preceito e não teve falta de adesão aos seus mergulhos interiores que cruzaram hip-pop, pop e r&b em temas como "Wow", "Better Now" ou "Insane" durante cerca de uma hora. Uma duração mais curta do que talvez muitos fãs esperassem, mas que, tal como no caso de Anitta, não terá comprometido uma noite recompensadora para boa parte deles.
Os shows dos poderosos da Rock Your Street
Numa das primeiras atuações do dia, Titica ganhou lugar entre as maiores surpresas desta edição do festival. E das mais fulgurantes, num espetáculo que também deveu muito a uma banda soberba e a quatro bailarinos, todos à altura da energia imparável da angolana.
Entre a tradição da sua terra natal e pistas de alguma música urbana, a artista transexual não só foi carismática e espirituosa ao dirigir-se aos espectadores como disparou uma mistura empolgante de kuduro com outras linguagens rítmicas.
Servindo episódios lânguidos e outros mais acelerados (com larga vantagem para os segundos), foi uma atuação especialmente poderosa quando tirou partido do embate entre as guitarras e a percussão, às vezes a lembrar o rockuduro dos luso-angolanos Throes + The Shine ou o universo de Pongo (não por acaso, Titica colaborou no álbum de estreia a solo da ex-vocalista dos Buraka Som Sistema, o recente "Sakidila").
Demolidoras, "Come e Baza" (dedicada à brasileira Pabllo Vittar) e "Chocalho" ganharam peso e força face às versões gravadas e mostraram ter no palco o seu território natural. O mesmo pode dizer-se de "Chão Chão", que nos últimos dez anos se tornou o maior hino deste percurso - e teve coreografia a rigor, com os bailarinos e muitos espectadores a baixarem-se a pedido da cantora.
Pelo meio, a anfitriã do início de tarde do palco Rock Your Street atirou farpas à homofobia e a pessoas "que não respeitam a diferença", ou não fosse declaradamente ativista desde o arranque da carreira. Já no final, o palco foi dos bailarinos, que partilharam uma dança tradicional angolana e conquistaram alguns dos maiores aplausos de uma atuação contagiante. "Queria mostrar um bocadinho da nossa cultura além do kuduro", explicou, convidando uma fã a subir a palco para acompanhar os seus movimentos. E terá certamente deixado os que aderiram ao concerto com vontade de a reencontrarem noutros palcos - do B.Leza ao Festival Músicas do Mundo ou ao Arraial Lisboa Pride, há muitos onde um espetáculo destes merece ter espaço para brilhar.
A convocar ainda mais público, algumas horas depois, o brasileiro Johnny Hooker levou à Rock Your Street um concerto que também juntou abalos rítmicos e uma atitude engajada. Sem meias palavras, o cantor natural do Recife criticou o "governo assassino" do seu país, "que atrasou propositadamente" a chegada das vacinas contra a COVID-19. A declaração esteve entre os episódios mais aplaudidos por um público maioritariamente seu conterrâneo e que mostrou conhecer as suas canções, muitas centradas em relacionamentos homossexuais (e com direito a bandeiras de arco-íris com Lula da Silva nas primeiras filas). Foi o caso de "Amor Marginal", dedicado a André, amigo do artista que morreu vítima de COVID-19. Já "Caetano Veloso" homenageou uma das suas referências, ao lado de David Bowie e Madonna, embora quem o visse, em modo gótico, talvez se lembrasse mais da iconografia de "The Rocky Horror Picture Show", do qual esta música que junta despudoradamente MPB, rock, brega e até flamenco parece ser descendente espiritual.
Por outro lado, os Idiotape fecharam um dos palcos mais interessantes do Rock in Rio Lisboa num horário em que muitos já estariam a pensar jantar antes de se preparem para receber Anitta. E por isso, o trio sul-coreano não teve a adesão que a sua explosão sonora merecia, mesmo que talvez se tenha encostado demasiado à faceta mais estridente dos Daft Punk, Justice e outros porta-estandartes da eletrónica francesa maximal. A pujança, a cargo de dois elementos nas programações e um na bateria, ainda converteu alguns à hora de recarregar baterias, mas teria tido outro impacto já depois do adeus de Anitta e Post Malone.
O Rock in Rio Lisboa 2022 decorreu nos dias 18, 19, 25 e 26 de junho. O regresso do festival já está confirmado para 2024.
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