O SAPO Mag entrevistou Romana Petri, que falou sobre a problemática da família, as possibilidades transgressivas da arte ainda possíveis, as diferenças culturais entre Portugal e Itália (onde manifesta a curiosa visão de que os portugueses se parecem mais com os britânicos do que os latinos) e os seus escritores prediletos de ambos os países.
A história de “A Representação”, livro editado pela Saída de Emergência, gira em torno de uma família portuguesa rica da qual o filho é casado com uma pintora italiana. E esta entra em guerra com o clã depois de criar um quadro onde o retrata de uma forma que não é propriamente a que os elementos da família gostariam...
SAPO Mag - Pode dizer-se que a sua grande predileção em “A Representação” é por personagens nem sempre agradáveis, preferindo exibir mais os seus defeitos do que eventuais qualidades. Concorda?
Romana Petri - Como Homero disse, o mal é feito para ser cantado, e neste meu romance há muito mal. Estava indecisa se lhe deveria chamar "A Peça de Teatro" ou "A Conspiração". Mas, no final, decidi pela via mais teatral e artística. Afinal, a protagonista, Albertini, uma personagem não inventada e que realmente existe, cujo nome é Rita Albertini e é uma pintora importante, é uma artista e a comparação entre representação na arte e representação como sinal de inautenticidade na vida era muito mais adequada.
Gostei da ideia do contraste: uma família cruel, sentimentalmente anoréxica, composta de muitas contradições e pessoas unidas sem se amarem umas às outras, unidas talvez mais por interesse do que qualquer outra coisa, contra uma mulher inocente, uma artista, que aos olhos de uma família burguesa, não cultivada, tem o único defeito de os ter retratado à sua própria maneira. Ou seja, exatamente como ela pinta, misturando traços de onirismo com o grotesco.
Dentro desta história de relações familiares tensas, como vê a família enquanto instituição?
A família é o lugar das maiores dificuldades e a dos Santos não é uma exceção. As rédeas são detidas pelo pai dos três filhos, Tiago, um homem prepotente, vaidoso e centralizador que tenta sempre depreciar o seu filho Vasco fazendo-o sentir-se inepto. Esse é o jogo: ‘se eu te faço sentir como um zé-ninguém, tu vais tornar-te facilmente um zé-ninguém’.
Outro processo também tem lugar em Vasco. Embora tenha sempre detestado o seu pai, acaba por querer ser como ele. Não se aceitar, não ser estimado pelo próprio pai. Joana, a fim de agradar o pai, aceita ser a instigadora da trama.
Rita não, ela tem um caráter superior que nada tem que ver com a família. Ela e Albertini representam a bondade. Infelizmente, no entanto, sempre soubemos que o bem é facilmente poluído e o mal não. Continua sempre a ser puro mal. Podemos pôr uma gota de água pura numa garrafa de veneno e continuará a ser veneno. Já uma gota de veneno numa garrafa de água também gera veneno.
Uma das suas personagens mais importantes não só é uma artista como alguém que acredita na arte. Acha que a arte ainda tem um poder transgressivo nos dias que correm?
Nos nossos dias, a arte tem menos poder do que no passado. A falta de cultura tornou-se mais pesada e a influência da arte diminuiu. É algo para poucos. Na verdade, mesmo no romance Albertini não é compreendida, eles estão convencidos de que ela os pintou para os ofender. Eles não compreendem de todo que essa arte tenta ver o invisível, que escava para uma nova realidade.
Mas não há dúvida que para os poucos que ainda são alimentados pela arte, mesmo que apenas como utilizadores, as possibilidades de ver o mundo com maior autonomia aumentam muito. A arte continua sempre a ser uma forma de liberdade. Não é coincidência que, em regimes ditatoriais, sejam antes de mais aqueles que podem pensar que são removidos ou eliminados. Artistas, precisamente.
Em termos pessoais, como surgiu esse trânsito entre Portugal e Itália?
Descobri Portugal ainda menina através dos livros de Antonio Tabucchi, que mais tarde tornou-se um grande amigo meu. Começar a frequentar o país tornou-se um vício. Amo muito este país, sinto-o simpático a certas necessidades minhas. Durante quase catorze anos, circulei entre Roma e Lisboa, de forma que também já me sinto um pouco portuguesa.
O encantamento ainda não acabou. Claro que também reparamos nos defeitos quando sentimos que um país é nosso. Mas, como boa portuguesa, não podem ser os outros a falar sobre isso...
Ao conhecer bem os dois países, você acha que existem muitas diferenças culturais entre eles?
Nunca há países culturalmente semelhantes. Acredito que nenhum país se assemelha a outro. Por exemplo, a Itália é profundamente latina, Portugal, na minha opinião, não, é muito mais britânico.
Os portugueses são silenciosos, discretos, não muito sociáveis, não muito confiantes nos outros. Ou melhor, levam mais tempo a confiar. Os italianos são impulsivos, bastante barulhentos, amigos desde o primeiro momento, embora essas amizades nem sempre sejam duradouras. Eu gosto de ambos. Estes dois países devem ser misturados.
Quais os seus escritores portugueses e italianos favoritos?
No que diz respeito a Portugal, adoro todos os clássicos, tal como, aliás, os da literatura italiana. No século XX há Saramago, Lobo Antunes e Cardoso Pires. Mas há também novas vozes muito interessantes, tais como Dulce Maria Cardoso, David Machado, João Tordo.
Em Itália Svevo, depois, Elsa Morante acima de todos os outros. E [Carlo Emilio] Gadda, [Giorgio] Manganelli, Natalia Ginzburg, Tabucchi, Goliarda Sapienza. Aliás, fiquei encantada em saber que agora existe um jardim com o nome de Antonio Tabucchi [na rua da Palmeira, em Lisboa]. Entre as novas vozes, certamente Teresa Ciabatti e Nadia Terranova.
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