O livro dos Silence 4 voltou a abrir-se, mais de uma década depois. Um MEO Arena repleto quis retomar a história da banda e fazer parte dela. Foram quase três horas de amor, celebração da garra de viver e lágrimas. Aquelas que nunca deixaram de correr, durante todos este anos.
A comovente história de Sofia Lisboa, vocalista da banda, que travou e venceu uma dolorosa batalha contra o cancro, faz despontar todos os sentimentos que o regresso de uma banda como os Silence 4 só por si já carrega. Desapareceram no início do século, em pleno estado de graça, e deixaram milhares de corações suspensos, amparados nos versos de “Borrow”, “To Give” ou “Little Respect”, tão fortes que estiveram sempre aqui.
As enormes filas para todos os sectores e o aparato à volta do Meo Arena poderiam fazer pensar os mais alienados que estávamos perante uma visita de um astro internacional. Os Silence 4 nasceram em Leiria, mas, sim, fizeram coisas inigualáveis. E a maior sala do país encheu mesmo, para aquele que foi provavelmente o último concerto de sempre da banda. David Fonseca apontou 18 mil pessoas, a maior parte na casa dos 30 anos.
Não é um projecto do David Fonseca. É uma banda com espírito adolescente, onde se escreviam canções imaturas, mais ingénuas e, por isso, tão fulgurantes e sinceras. É a banda dos amigos de Leiria que ensaiavam numa sala minúscula e conquistaram Portugal sem fazerem tenções disso. É a banda onde as vozes de David Fonseca e Sofia Lisboa se entrelaçam até ao infinito e nos convencem que nos devemos apaixonar a sério.
Apagam-se as luzes, soltam-se os suspiros da plateia, mas, antes das canções, é projectado um bocadinho da história e dos passos febris dos Silence 4, com excertos de noticiários, prémios, recortes de imprensa e uma pequena noção cronológica. “Boa noite!”, dá o mote Sofia Lisboa. Perante um cenário sóbrio e minimalista (que afinal viria a ser verdadeiramente extrovertido), feito de um pano vermelho, “A Little Respect” dá início à sucessão de inevitáveis clássicos. Com uma certeza imediata: este regresso fazia sentido para toda a gente na enorme sala. Rapidamente, sem grande contenção na intensidade, “Old Letters”, uma das canções mais depressivas de “Silence Becomes It”, “Diyng Young” e, estranhamente tão cedo, “Borrow”. David Fonseca admite que a canção se “tornou muito maior” do que a banda esperava. E é inegavelmente o maior sucesso da banda, partilhado em muitos karaokes, rádios do carro, ipods e CD’s gravados (do tempo dos Silence 4) por muitas gerações.
Entre “Don’t II” e “Not Brave Enough”, aparece um aquário gigante, a três dimensões, do lado esquerdo do palco e descem do tecto várias cadeiras. A primeira grande surpresa da noite vem agarrada a uma das duas músicas cantadas em português gravadas. “E se convidássemos um herói nosso?” Sérgio Godinho aceitou fazer parte do disco dos Silence 4 de 1998 e voltou a aceder ao convite para participar na festa de ontem, perante um mar de aplausos.
Mudando o registo, desce um carro azul, que estaciona no palco para a jovial “My friends”. David Fonseca livra-se da postura comedida, acelera para cima do carro com um megafone e contagia todo o Meo Arena – toda a gente de pé e a dançar, com menos dez anos nas pernas (não aplicável aos adolescentes presentes). Se o que se seguiu fosse o final do concerto, todos sairíamos em êxtase e sem reclamações: “To Give”, já suficientemente emocional, é acompanhada por uma sala transformada em céu estrelado por lanternas de telemóveis acesas (que ganham largamente aos reformados isqueiros no campo do impacto visual).
Que dizer de um concerto em que te deslumbras com um momento alto e logo a seguir vem outro mais arrepiante? “Angel’s Song” desassossegou até as estruturas de madeira do Meo Arena. Sofia Lisboa, convidada a discursar antes da música, diz que se tem tornado “cada vez mais especial”. “Julguei que nunca mais a ia cantar. Se não estivesse cá hoje, vocês cantavam a minha parte”. Dedicou-a a “todos os anjos que aqui estão hoje no nosso coração”. E os agudos da vocalista, que normalmente sobem e nos levam às estrelas, ali precipitaram o choro e abraços bem apertados, no palco e na plateia. São os Silence 4.
Com um alinhamento que soube piscar o olho a todas as preferências e estados de espírito, ainda tivemos “Happy Song”, “Where are you”, a efervescente “Only Pain is real” e nova música particularmente especial. De olhos a brilhar, frente a frente, de olhos a brilhar, David Fonseca e Sofia Lisboa partilharam a doce “Eu não sei”.
Em jeito de encore, os quatro elementos da banda transportaram-se para o centro da sala, num palco aconchegado (do tamanho da sala onde ensaiavam em Leiria), e corrigiram durante uns minutos a falta de intimismo que um concerto num espaço tão grande provoca. Sofia Lisboa agradeceu à irmã, que lhe salvou a vida ao doar medula óssea, e cantou uma “canção especial”, diferente dos outros concertos: versão acústica de “Invincible”, dos Muse, que conservou (por motivos óbvios) a original toada épica. A artista admitiu que pensou muitas vezes em desistir e, numa dessas vezes, “a minha irmã deu-me a mão e começou a cantar isto”.
Depois dos arrepiantes “Cause there’s no one like you in the universe / Toghether we’re invincible / Make your dreams come true” e mais uma série de murros no estômago, sobe ao palco a heroína da história para um abraço de vida que congelou todos os olhares. No mesmo sítio, foram ainda tocadas músicas que acabaram por não constar de nenhum dos álbuns. David Fonseca disse que “se não tivéssemos editora, por esta altura teríamos cinco mil canções e estaríamos a cantá-las aqui”. Registamos “Silence Becomes it”, aquela que, ironicamente, dá o nome ao álbum mas ficou de fora. E novamente as luzes dos telemóveis a estrelar o pavilhão.
A noite acaba com a notícia de que foram angariados 30.000€ pelos Silence 4 para a Liga Portuguesa Contra o Cancro. Ainda houve tempo para “Search me not” e “Breeders” antes da despedida definitiva. A banda decidiu repetir “Borrow, “My friends” e “Little Respect” (com Sofia Lisboa a distribuir simpatia junto às grades) e, depois de nova saída, e quando muitos já tinham abandonado o Meo Arena, a recuperação de uma das mais emotivas da noite, “Angel’s Song”. Ficaram algumas dúvidas sobre a pertinência de repetir as músicas no mesmo concerto, mas depois lembramo-nos de um argumento retumbante: pode mesmo ter sido a última vez que as cantámos com os Silence 4. E se é para nos despedirmos de vez, então que seja mesmo, mesmo a sério, até faltar a voz.
O facto de o reencontro dos Silence 4 ser um dos desejos da Sofia Lisboa (com ou sem ela) durante a sua crise de saúde torna acessórias mais palavras que usarmos: eles são mesmo um fenómeno especial acima do nosso entendimento.
Fotografias: Rita Sousa Vieira
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