A peça, que é apresentada integralmente pela primeira vez, a partir de hoje, em Guimarães, parte de uma tradução anónima de literatura de cordel, do século XVIII, em que o nome de Molière é omisso.
"Um D. João Português" toma o palco do Centro Cultural Vila Flor durante dois dias, com a sua representação em dois blocos: hoje, com "Na Estrada (da vida)" e "O Mar (e de rosas)" e, no sábado, com "As árvores (dos desgostos)" e "A escuridão ao fim da estrada", a terceira e última parte da obra.
Segundo Luís Miguel Cintra, que escreveu o texto dramatúrgico e encenou a tetralogia protagonizada por D. João e seu criado Esganarelo, "Um D. João Português" é "uma viagem" de um homem que é "vítima da sua própria inteligência", questionando tudo e o seu contrário, que parte numa fuga ao casamento com a sua amada D. Elvira e às teias da justiça, já que matou um Comendador, pai de uma das suas (muitas) conquistas.
Mais do que um texto, é um fio de pensamento, como defende o encenador que devia ser o teatro: "Suspiro por um teatro que transmita o pensamento das pessoas que o estão a fazer. Eu acho que o teatro não é um sítio onde as pessoas se exibam para as outras os admirarem. É um sítio onde as pessoas fazem uma representação da vida, do mundo à sua maneira, cada qual com o seu estilo, para os outros discutirem, analisarem e também partilharem a sua visão", disse.
Para Luís Miguel Cintra, "tudo devia funcionar como se a gente estivesse a pensar".
"O meu pensamento funciona de muitas maneiras, não é um pensamento discursivo, normal, do princípio até ao fim, tudo muito bem organizado. O nosso pensamento é caótico, remete para associação de ideias, experiências pessoais, coisas do passado, outros textos... E porque é que não devemos fazer isso no teatro?", questionou.
E talvez assim se entenda no palco um outro palco, onde alguém canta "Eu tenho dois amores", de Marco Paulo, enquanto duas donzelas trocam argumentos sobre a qual delas D. João jurou desposar e amor eterno.
Sobre o texto, o encenador explica que este é "já impuro, manipulado por várias pessoas", tratando-se de um texto português antigo, do fim do século XVIII, em que o "tradutor anónimo não indica sequer o autor e modificou as cenas".
"A peça do Molière acaba com a condenação do D. João, um desavergonhado, um traidor que foge do casamento e mata o pai de uma sua conquista, e manda-o para o inferno. Na versão portuguesa é o contrário. Confrontando-se com a estátua do comendador lhe aparece, D. Elvira que lhe perdoa tudo e acaba tudo com um banquete do casamento, é assim muito mais parecido com aquilo que a gente conhece de facto", referiu.
Tal como no original, a única relação constante de D. João é a cumplicidade do seu servo, Esganarelo: "A palavra amor aparece muito poucas vezes, faz a corte às senhoras e assim, mas não é bem amor. E há o D. João e o seu criado, lembram-me perfeitamente o D. Quixote e o Sancho pança. Porque não meter umas figuras que lembrem uma cena deles?", apontou.
"No fundo é a mesma coisa, uma relação de poder, de patrão e criado, que é vivida ao contrário disso, há uma grande amizade. Esbatem-se as diferenças de classe. A sensação que gente tem na peça é de que tudo está a mudar e o próprio D. João é vítima disso, é vítima da sua inteligência", explicou.
O espetáculo resulta de uma peça itinerante encenada por Luís Miguel Cintra, desde o fecho do Teatro da Cornucópia, em dezembro de 2016.
Após a estreia em Guimarães, o espetáculo fará um percurso no sentido inverso ao da sua preparação, com representações marcadas para o Teatro Viriato, em Viseu, a 26 e 27 de janeiro, no Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, nos dias 23 e 24 de fevereiro, e no Cinema-Teatro Joaquim de Almeida, no Montijo, a 2 e 3 de março.
Os espetáculos nas quatro cidades realizam-se todos às 21:30.
Às cidades previstas inicialmente acresce Almada, em cujo Teatro Municipal Joaquim Benite a peça será representada a 10 de março, às 21:00, e a 11 de março, às 16:00.
Comentários