Impossibilitado de levar avante os seus projetos por causa da pandemia, Miguel Gomes e a sua companheira e cineasta Maureen Fazendeiro fecharam-se numa herdade com uma equipa e três atores em agosto de 2020 para procurar a cerne de todos os “filmes de confinamento”.
“Diários De Otsoga”, o resultado, tem um pouco de tudo: absurdismo, experimentalismo e estética. É uma obra em permanente busca do seu espírito, sem nunca perder a sua liberdade, recebida com inúmeros elogios após a apresentação na secção paralela “Quinzena dos Realizadores” da mais recente edição do Festival de Cannes.
No caso de Miguel Gomes, este desafio cinematográfico foi também um reencontro com Crista Alfaiate, atriz que há poucos anos figurou num lugar de destaque nas “crónicas do país triste” de “As Mil e uma Noites”: ela foi Sherazade, não por um dia, mas por três filmes.
Agora é ela própria num filme ao lado de Carloto Cotta e a revelação de “Mosquito” João Nunes Monteiro, onde se revela uma artesã do improviso, da experimentação e, sobretudo, da liberdade artística. O SAPO Mag encontrou-a em Cannes.
Antes de mais, gostaria que me explicasse como surgiu a ideia para este projeto e como o integrou?
O Miguel tem mencionado um encontro específico - a primeira vez que saíram de casa [depois do confinamento] - em minha casa e a do Rui Monteiro [técnico de iluminação]. Aí conversámos sobre a impossibilidade de se realizar espetáculos, de teatro - como é o meu caso e do Rui - e de cinema, como era o caso do Miguel, que tinha duas produções paradas. Nessa conversa surgiu uma ideia contracorrente, uma motivação resumida como "temos que, imperativamente, fazer um filme". Contornar esta impaciência, esta realidade, esta fatalidade, em suma, esta pandemia. Partimos para dentro desta casa, todos nós testados, e tendo em conta o tempo, embarcámos nesta viagem sem um guião estabelecido.
Ou seja, este é um filme totalmente dependente do improviso?
Existe muita 'coisa' planeada, nomeada a estrutura trazida pela Maureen e pelo Miguel, mas no geral o filme foi movido pela improvisação, tendo muito sido escrito ao longo do processo de rodagem. Respondendo à pergunta, sim, houve uma experimentação ao longo desta produção, mas estabeleceram-se balizas para o que se propunha.
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Então, o que poderemos considerar real e que é ficção no “Diários de Otsoga”?
Acho mesmo que o interessante do filme é o de não ter a perceção do que é real e o que foi simplesmente encenado. É algo que deixamos no ar, para que o espectador pense no que realmente está a ver, até porque a mecânica do mesmo é exposta. A maneira como se filma, a equipa que filma e até mesmo a localização da câmara. Este jogo, que é uma certa manipulação por parte da Maureen e do Miguel na sala de montagem, e não só, é conceção da estrutura, é interessante e é estimulante ficar-se com dúvidas. Ou seja, uma resposta para uma dessas perguntas é que não responde ao que se pretende.
Nesse sentido, podemos considerar o filme como docuficção?
Diria que é mais... ficção. Mais do que docuficção.
A narrativa de “Diários de Otsoga” é inversa. Houve um convencionalismo na rodagem ou tudo se baseou na sala de montagem?
Poderemos dizer que foi uma rodagem convencional, porque seguimos à luz do diário, mas ao mesmo tempo não o foi, até porque estávamos todos na mesma casa, sem guião preparado, ou seja, pensávamos somente naquilo que iríamos fazer no instante, no seguinte. Não havia um cronograma rígido.
Tendo com conta a sua experiência com o realizador na trilogia “As Mil e uma Noites”, sentiu estar num filme do Miguel Gomes ou da Maureen Fazendeiro?
Há “inputs” no filme que são muito diferentes. Aliás, tudo isto é uma combinação de duas fixações. Para já, a diferença é filmar com um realizador e o de filmar com dois realizadores. E depois há obsessões distintas, que na minha perspetiva, se juntaram muito bem. Ou seja, não existem particularmente ‘coisas’ que possamos apontar e afirmar que “isto é do Miguel e isto é da Maureen”. A construção da obsessão dos dois está muito... como diria... ligada. Também a grande diferença é que este filme está carregado da vida deles. A sua vida conjunta. No fundo, “Diários de Otsoga” é a vida de um casal e a chegada de um bebé que interfere nesse processo de criação e de realização. Tivemos que mudar todo o processo para que Maureen pudesse acompanhar as filmagens e, ao mesmo tempo, cuidar do seu bebé. Ela foi a única que pôde sair da casa – para a ecografia e nesse dia o Miguel teve que acompanhá-la –, o que alterou automaticamente toda a trajetória do filme, deixando nós [atores] a tomar conta e a continuar. Tudo muda, até mesmo a informação trazida deste casal “contamina-nos”, porque estávamos todos confinados e juntos.
Sobre esta emancipação do ator em relação ao filme e apropriando-me de um frase do Carloto Cotta: esse dia foi um “desperdício de fita”?
Gastámos três bobines... só naquele dia! [risos] Filmámos várias cenas, grande parte não chegou à montagem final. Posso adiantar, por exemplo, que fechámos o diretor de fotografia, Mário Castanheira, na gaiola dos pássaros. Mas apesar de tudo isto, não acredito que tenha sido um "desperdício" de fita. Pelo processo, pela liberdade que tínhamos, pela proposta e sobretudo pela possibilidade de lançar três bobines para a mão de um trio de atores e de uma equipa e esperar para ver o que realmente acontece. Aconteceu neste filme, porque o Miguel e a Maureen estavam abertos a tais propostas, e tendo em conta que tínhamos em mão um projeto sem guião predefinido, nos deram possibilidades para integrar a experiência. O gesto foi o de “o que podemos retirar dos nossos dias” e nisso resultou uma provocação. Para nós, foi incrível sermos realizadores por um dia.
Visto que “Diários de Otsoga” é um filme sobre confinamento e, logicamente, de pandemia, como vê este cenário no vosso trabalho enquanto atores? Ou melhor, enquanto trabalhadores no ramo?
Aqui [França] já foi anunciado que, para aceder às salas de cinema, será necessário um certificado ou um comprovativo de teste negativo. Portugal possivelmente seguirá o mesmo caminho, o que será uma grande “facada” ao sector, não só para o cinema mas também para a cultura em geral. Esta medida será como “cortar as pernas” ao percurso destes projetos. E como vejo isso? Trágico. Simplesmente trágico, porque influencia a vida em todo o sentido. Não levará o trabalho ao seu máximo potencial e ao seu expoente de visualização. E já era assustador quando nos deparávamos com os números de cinema português, e ainda mais de teatro. Eram péssimos. E os orçamentos? Nem vale a pena mencionar isso. E só de pensar que não haverá algum tipo de retorno e alguns projetos nem irão arrancar. Isso afeta o nosso trabalho e a nossa vida.
O streaming como ser uma alternativa para o vosso trabalho? Tem sido anunciada a criação de algumas produções nacionais em plataformas como Netflix ou HBO.
Pode ser uma alternativa de trabalho, mas não será uma solução para a produção nacional. O filme continua a querer ser visto na sala de cinema, com a qualidade que se quer e a qualidade que se tem. E com os tempos e duração específica de cada produção. Normalmente existe uma tendência de formatação e globalização, para que isto caiba num catálogo de streaming, mas que não é de todo a mesma ‘coisa’ que cinema de autor. Falo de cinema de autor, porque é aquele cinema que solicita o seu invariável tempo e a sua linguagem, e que não corresponde a um público-alvo ou a uma etiqueta do catálogo.
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