A ideia do filme começa a bordo do Express Santorini, o navio que fazia a ligação entre São Miguel e o Faial, e que demorava 16 horas a chegar ao seu destino. “Um barco antigo, mas que tinha sido de luxo, ainda mantinha os veludos, os padrões dos anos 70 mas agora alguma decadência”, recorda Amaya, que ficou fascinada por este lugar no mar ser o ponto de encontro de muitas pessoas da ilha. “As marmitas, os sacos-cama, as guitarras, as conversas e o convívio, de repente era a casa de muitos durante 16 horas”, recorda o ponto de partida do filme e essa viagem em 2016 – “fiquei a observar e a pensar como aquele barco parecia uma ilha em movimento, até porque muitas pessoas que viviam em freguesias diferentes da ilha acabavam por se cruzar ali”.
Olhar para os barcos como espaços sociais e solidários foi o ponto de partida para pensar sobre o mar como um agregador das ilhas. Além do filme, este é também o tema da tese de doutoramento em Antropologia Visual que Amaya conta entregar em setembro. No documentário, nota-se que há um trabalho de pesquisa e de recolha etnográfica intenso mas ao mesmo tempo as histórias, paisagens e personagens trazem-nos a leveza e humor necessários para navegar suavemente pelo filme.
As histórias de marinheiros e comandantes, dos despenseiros ou mesmo de quem fica em terra e se despede nos portos marcam a história dos Açores. Era de barco que se levavam medicamentos, petiscos, cartas de amor, notícias de quem está na guerra ou de quem foi para a América. Era também pelo mar que se levavam as vacas, os autocarros, os carros da polícia ou dos bombeiros, as frutas, as couves, o vinho e as mobílias.
Sobre as várias formas de pensar o mar, a antropóloga encontrou um conceito do Pacífico que fala em aquapélagos – “para eles o mar é um espaço social como a terra; para nós, no ocidente, o mar é um espaço vazio ou um obstáculo, um intervalo entre as terras, e o mar é quanto muito, com a pesca, um espaço de trabalho”. Em Entre Ilhas surge algumas vezes a questão: “o mar é uma estrada ou uma barreira?” e foi nesta ambiguidade que a realizadora se debruçou neste filme “impregnado de mar”.
Durante a pesquisa sobre o Express Santorini, apercebe-se que o paquete Carvalho Araújo ou o navio Ponta Delgada são personagens principais na memória de quem vive nas ilhas e acaba por transportar estas memórias para o Entre Ilhas. Começou a filmar “sobre o presente”, mas “o filme foi crescendo para outra viagem”. “São viagens dentro de viagens”, explica Amaya, que foi seguindo as pistas, com tempo e disponibilidade. “Agora tenho estado a rever o filme e noto que há brilho no olhar pessoas e gosto muito disso. Talvez seja o brilho com que falam do Carvalho Araújo, quando relembram o som dos guindastes e outros pormenores. A verdade é que quando os ouvi pela primeira vez recordo-me também desse deslumbramento”, reflete.
Amaya explica que gosta da possibilidade de transmitir sensações e que o público consiga transmitir ao público o mesmo que sentiu no momento. Como deixa a pesquisa e o rigor académico para depois, esforça-se por ir com pouca informação, com poucos preconceitos e brincar com essa disponibilidade e tempo.
Este tempo de filmagem descomprometido e a conjugação entre o estar no terreno e retirar-se para poder analisar nem sempre corresponde às expectativas de um mercado de produção audiovisual. Entre pesquisa, filmagem e pós-produção foram precisos cinco anos. “Mas todo o encontro precisa do seu tempo, e o que é um filme, se não uma soma de tantos encontros?”, escreve nas notas ao filme.
Os Açores e o mar entre o cinema e a academia
Filmar com tempo os Açores já não é novidade para Amaya. A madrilena chegou ao arquipélago com vinte anos através do programa Erasmus. Na procura de algo, queria ir para um sítio remoto, onde ninguém a pudesse ir visitar. Trocou a capital espanhola e a possibilidade de ir estudar nas grandes cidades europeias para continuar os seus estudos em Filologia em Ponta Delgada. Estudou Vitorino Nemésio e outros autores portugueses e brasileiros e até hoje mantem o interesse literário da narrativa e do ato de contar uma história. Com tempo, ficou muito mais do que o previsto. Trabalhou durante quatro anos numa instituição de solidariedade e dava formações numa oficina de fotografia analógica em São Miguel.
Durante sete anos filmou Meu Pescador, Meu Velho na pequena aldeia de Porto Formoso e acompanhou, com uma pequena câmara de filmar, as diversas transformações dessa comunidade. Muitas horas de imagens e um grande bloqueio na edição atrasavam o processo. Foi por acaso, em Lisboa, que viu um cartaz a anunciar o mestrado em Antropologia Visual e pensou que a pudesse ajudar a desbloquear o filme. Assim foi e a partir daí trabalhou sempre nesta dança entre o Cinema e a Antropologia.
O filme estreou na pequena freguesia no norte de São Miguel e percorreu os festivais internacionais de cinema. No seu lado mais académico, ganhou o prémio Octávio Lixa Filgueiras, que promove a investigação na área das Ciências Sociais dedicada a temas de cultura do mar. Depois, na vertente mais artística, venceu na categoria de melhor documentário lusófono do festival CineECO, em Seia.
Foi também com um grupo de sete antropólogos que, em conjunto, realizou Um Ramadão em Lisboa, em 2018. O filme passou na televisão e teve uma grande circulação. “Não estávamos à espera, era algo académico mas ficamos contentes de sair do campo académico”, conta. Para Amaya, esta dualidade de olhares que se contagiam acaba por ser também complementar. “Há um lado mais teórico e objetivo e no filme a minha viagem, é algo mais subjetivo”, explica.
A recolha de imagens, a pesquisa, a música e o regresso às ilhas
Com cerca de 60 horas de vídeo é também na tese que ficam as muitas histórias e ideias que não cabem no filme e este processo traz-lhe alguma paz. Foram dois anos a filmar, “não seguidos, mas durante o verão, de maio a setembro”, explica.
Depois, somam-se três anos de transcrições, pesquisa, recolha de imagens, ida aos arquivos, à RTP, RTP Açores, Cinemateca, filmes que se encontram na internet, etc. e tratar de muitas burocracias.
Há ainda a música, a original, a recolha de música etnográfica e o saxofone que vai acompanhando o baloiçar das ondas que Amaya entrou em mais um acaso quando partia da Graciosa.
"Este filme já não dava para fazer agora.Tive a sorte de estar no sítio certo na altura certa."
Foi também a São Jorge na busca de uma música e depois, de ilha em ilha, procurar os entrevistados, durante a pandemia e anos depois das entrevistas, para lhes pedir para assinar as declarações de direitos de imagem – um processo que acabou por ser doloroso ao descobrir que alguns já tinham falecido e demorado por ter de fazer mais viagens na procura dos filhos, por exemplo. “Este filme já não dava para fazer agora”, conta a realizadora e complementa sobre a importância da recolha que foi feita: “Tive a sorte de estar no sítio certo na altura certa.”
Depois de uma sessão no Faial e a antestreia na Cinemateca, Entre Ilhas estreia amanhã em sala em Lisboa, Porto, Leiria e Setúbal e o que foram alguns anos de trabalho solitário vai transformar-se numa partilha com o público.
“Muitas vezes tenho a sensação de que o filme é uma viagem do realizador e tenho receio que não haja esse encontro, fico um bocado insegura nesta parte de mais exposição, mas dia 30 é para levar amigos e festejar. Vamos ter convidados e algumas conversas nos próximos dias e estou muito contente por o filme estar em quatro salas”, conta.
As ilhas que não são margens e uma capital a meio do Atlântico
Calhou que grande parte da pós-produção deste filme acontecesse em altura de confinamentos, e pensar sobre o isolamento nos Açores acabou por ganhar outras camadas. Afinal, “há movimentos mais sociais e solidários do que pensamos” e também é assim nas ilhas. “Pensamos em cada ilha separada mas temos de quebrar esse paradigma de pensar nos Açores como estando na margem e passarmos a olhar para o arquipélago como estando no centro”, explica a realizadora, que recorda a candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura em 2027.
“Não é Paris, nem Madrid, nem Porto nem Guimarães, é no meio do Atlântico e ter uma capital no que chamamos ultraperiferia acho que seria muito corajoso”, afirma. Já há alguns projetos a acontecer com base nesta candidatura [como esta residência que o SAPO acompanhou no Corvo] e Amaya conta que Entre Ilhas possa passar nos barcos de passageiros trazendo a Cultura para perto de um público que não é o seu habitual.
Um cosmos com viagens pelo ar e barcos em terra
Foi também durante a pandemia que a Atlântico Online, a empresa responsável pelo transporte marítimo entre as ilhas, deixou de operar entre os grupos açorianos. Ou seja, viaja-se entre as ilhas do grupo central, entre as Flores e o Corvo, mas as longas viagens entre os grupos continuam sem acontecer.
"As ilhas têm de estar ligadas."
E a Santa Maria só se chega de avião. Para Amaya é necessário pensar a forma de viajar nos Açores e “não faz sentido que não haja mais barcos no verão”. Consciente do possível enorme investimento público, a antropóloga fala na necessidade de repensar – “se calhar não são necessários barcos com centenas de lugares, mas não é razoável que a única forma de chegar a uma ilha num arquipélago seja de avião. As ilhas têm de estar ligadas”.
Fala na ideia de cosmos e das suas cadeias de ligação para traçar a comparação entre um arquipélago e as suas ilhas, mas divagando poeticamente, conclui: “há paisagens inacreditáveis que fazem já parte da viagem e o mar tem de ser pensado como património e como uma estrada”.
Route 55: uma estrada com uma planície de mar
Depois de muitos anos virada para o mar, agora o olhar de Amaya virou-se para terra firme. Aconteceu num acaso: numa viagem entre Lisboa e Madrid, a realizadora parou para por gasolina numa estação numa pequena aldeia. Ficou quatro dias. E agora quer contar a história desse sítio. “É mais um universo muito masculino e na verdade há qualquer coisa de mar e de infinito naquelas paisagens”, explica a realizadora sobre o ponto de paragem entre camionistas portugueses e espanhóis nas planícies do centro da península.
Rota 55 vai ter de ser gravado e a realizadora sabe-o desde que se deparou com a história. Ainda sem financiamento nem apoios, vai começar a gravar. Foi assim com os outros filmes e será assim também com este: o tempo e a disponibilidade para estar misturam-se com a urgência de contar a história. Para já, Entre Ilhas pode ser visto a partir de amanhã nos cinemas.
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