"Estava constantemente à procura de si mesmo e de se renovar", diz Rafael Morais a propósito do protagonista de "Amadeo", filme de Vicente Alves do Ó que se estreia esta quinta-feira, 26 de janeiro. Mas o ator nascido em Coimbra há 33 anos também confessa ao SAPO Mag, durante um encontro com a imprensa em Lisboa, partilhar essa procura que o tem levado a mover-se entre o cinema, a televisão e o teatro, em projetos por cá ou lá fora.
Antes de interpretar o pintor modernista, que morreu precocemente aos 30 anos em 1918, Rafael Morais foi Manuel Botelho em "Amor de Perdição" (2008), de Mário Barroso, encarnou o elemento mais jovem da família de "Sangue do Meu Sangue" (2011), de João Canijo, e destacou-se em séries como a espanhola "White Lines" ou a portuguesa "Glória", ambas apostas da Netflix.
A caminho estão tantos outros papéis no reencontro com Canijo no díptico "Mal Viver"/"Viver Mal", nas séries da RTP "Madrugada Suja" e "Lugar 54" (esta da RTP Lab), no regresso à Netflix em "Rabo de Peixe", e nos filmes "Homeland", de Bruno Gascon, ou "Malcriado", o próximo de Vicente Alves do Ó. Mas há mais, como o próprio adianta numa entrevista na qual recorda uma temporada "submerso no Amadeo". Um processo necessário para alguém que defende que "a câmara consegue ver as coisas mais subtis" e que oferece aqui um dos seus desempenhos mais magnéticos e implosivos, à medida da versão do artista "muito pouco teatral" e "muito pouco académica" que o realizador procurava.
SAPO Mag - Antes deste projeto, que contacto tinha com a obra de Amadeo de Souza-Cardoso?
Rafael Morais - Não conhecia muito, para ser totalmente honesto. Conhecia algumas obras, nomeadamente o quadro "Os Galgos", que é dos mais icónicos e mais populares. Depois é que comecei a pesquisar e a conhecer.
De que forma é que olha para ele agora e para a forma como marcou a arte nacional e internacional?
Acho que é alguém que estava constantemente à procura de si mesmo e de se renovar. Ele queria mais, queria diferente, não queria estar limitado às modas da altura, ou o que as pessoas gostam ou o não gostam. Identifico-me muito com isso. E espero que o filme dê a conhecer este Amadeo e a obra dele também, porque na verdade ainda é muito desconhecido.
Sente um peso acrescido ao desempenhar um papel protagonista?
Já fui protagonista algumas vezes, aqui tinha o peso acrescido de interpretar uma figura nacional tão importante. Esse foi o grande peso que eu não tinha sentido antes. E também foi um filme de época, o primeiro grande filme de época que fiz, que também traz outro tipo de desafio. Mas isso foi, na verdade, também o que me entusiasmou.
Como foi o processo de criação desta personagem? Muito de acordo com indicações de Vicente Alves do Ó ou houve espaço para pesquisar e tentar encontrar outros modelos de interpretação?
Maioritariamente, vi muitos filmes que retratam esta época, porque isso é útil para um ator. Mas tivemos muita liberdade, uma vez que não há registos de áudio e vídeo do Amadeo, por exemplo. Isso deu-me uma liberdade muito importante e que eu gostaria de ter de qualquer forma, mesmo que houvesse registos de áudio e vídeo. Mas não tive de estar preso a sotaques, ou maneiras de andar, ou gestos...
Neste filme, entre outros atores, contracenou com Eunice Muñoz e Rogério Samora em dois dos seus últimos papéis. Como olha agora para essa experiência?
Foi ótima e emocionante. Tenho pena de não poderem ter visto o filme. Mas posso sentir-me muito grato e feliz por ter tido a oportunidade de trabalhar com um elenco que contou com uma quase lenda de Portugal, do mundo da arte, que dedicou a vida aos palcos e à profissão. E com o Rogério, que era uma luz no set e com quem me entendi muito bem. Ele tinha uma energia incrível, era um ator muito generoso, apesar da longa experiência. E foi um luxo trabalhar com ele. Acho que tivemos muita sorte com o elenco em geral, eu tive muita sorte. Estive em boa companhia e isso nota-se no filme. E isso é muito importante, especialmente ao fazer um filme com esta complexidade e exigência.
Tiveram tempo de se conhecer antes de começarem a trabalhar? Como decorreram as filmagens?
Sim, tivemos. Houve uma fase inicial de residência em Amarante com o núcleo central do filme, precisamente para isso. Não só para nos conhecermos uns aos outros, mas para quebrar o gelo, para ser mais fácil a comunicação, para criar uma relação entre nós muito mais orgânica, muito mais real. E isso acho que a câmara capta sempre. A câmara consegue ver as coisas mais subtis e isso foi muito importante. Fomos a casa do Amadeo, onde ele cresceu. Olhei pelas mesmas janelas que ele olhou, onde se inspirou para vários quadros, foi mágico. Grande parte da minha pesquisa foi também visitar os cofres da Gulbenkian, onde estão diários do Amadeu, objetos de pintura e desenho. Poder tocar neles foi algo quase místico. E depois as cartas que escreveu à família, à Lucie, que é na verdade onde vemos mais o Amadeo como pessoa, para além da arte - o lado humano dele, os medos, os receios, os sonhos. Mais do que tudo, foram as cartas, as correspondências. Também escrevi centenas de cartas para criar este Amadeo.
Preparou-se de forma especial para o processo de leitura das cartas que ouvimos no filme?
Tinha o apartamento, a cozinha cheia de fotos do Amadeo e de cartas que eu transcrevia nas paredes, como se fosse algo obsessivo, para estar submerso no Amadeo, mesmo em casa. Outra coisa importante foi ter tido algumas aulas na Faculdade de Belas Artes com a pintora Constança Villaverde Rosado para ter alguma técnica, mas também para perceber o lado meditativo.
Tem pouco mais do que a idade que Amadeo tinha quando morreu. Um dos dilemas que ele tem no filme é ficar ou partir. Hoje em dia, sente-se um privilegiado por ter a possibilidade de escolha e de já ter feito papéis tanto nacional como internacionalmente?
Sim. Não sei porquê, mas desde pequeno que saltei um bocado de casa em casa, quando era mais novo. Nasci em Coimbra, depois vivi no Porto. E tive sempre a saltar um bocado, porém estou um bocado habituado e também me farto rapidamente. Claro que é bom ter um sítio a que possa chamar de casa, mas gosto do entusiasmo. Especialmente em trabalho, de conhecer pessoas novas, de trabalhar em meios diferentes, em países diferentes. O meu objetivo é esse, fazer coisas diferentes. Não me quero repetir, um pouco como o Amadeo, na verdade. Quero elevar-me o máximo possível.
Também trabalhou com Vicente Alves do Ó no seu próximo filme, "Malcriado". E tem vários projetos a chegar: séries como "Rabo de Peixe", filmes de João Canijo...
Sim, o "Viver Mal" vai começar a carreira de festivais em breve. Também o "Homeland", do Bruno Cascon. E estive quase um ano a aprender linguagem gestual na Albânia, que foi muito interessante, para uma coprodução entre a albanesa, grega e do Kosovo ["A Cup of Coffee and New Shoes On", de Gentian Koçi]. Foi um novo desafio. E estou agora a terminar a rodagem da nova longa-metragem do Pedro Cabeleira, "Entroncamento". Daí este corte de cabelo [rapado de lado]. Completamente diferente do Amadeo. (risos)
TRAILER DE "AMADEO":
Comentários