Lloyd Cole bem pode cantar "No More Love Songs" e repetir o título da canção as vezes que quiser que ninguém acredita. Desde "Rattlesnakes", o álbum de estreia ao lado dos Commotions - já lá vão 26 anos - que o cantautor britânico acaba por ir parar sempre aos males do coração. Ao que parece, é um mal que afecta muita gente. Pelo menos em Portugal, onde não tem faltado quem o acompanhe há décadas.

A noite de ontem - a penúltima da sua digressão nacional, antes da despedida em Coimbra - comprovou isso mesmo, convocando muitos fãs de longa data - daqueles com idade suficiente para já terem tido o coração partido pelo menos uma vez. Não por acaso, "Are You Ready to Be Heartbroken?" foi das canções mais entoadas pelo público, mas nem tudo é tão triste como parece. Longe disso, já que Cole não só se mostrou sorridente como deixou dois ou três momentos espirituosos.Foi o caso doencore, de apenas um tema, e logo o mais celebrado: "Jennifer She Said". "Vocês já não têm idade para cantar isto. Eu já não tenho idade para cantar isto. A única forma de ultrapassarmos isto é cantarmos juntos". E o público, claro, não perdeu tempo.

Na cerca de hora e meia que antecedeu este desenlace certeiro, Cole esteve apenas acompanhado por Mark Schwaber e Matt Cullen, dupla que compõe o seu Small Ensemble, e percorreu canções de vários discos sempre de forma despojada: guitarras, banjo, mandolim e uma voz em forma revelaram-se mais do que suficientes. Esta opção, se por um lado reforçou o intimismo da actuação, também resultou num cardápio sonoro talvez demasiado homogéneo. Mas ninguém se importou, por exemplo, que canções como "Rattlesnakes" tenham sido servidas de forma menos majestosa do que em disco. A adesão foi praticamente uma constante, tanto em relação a outros clássicos como a temas do recente "Broken Record", com destaque paraa faixa-títuloe o single "Writers Retreat!".

Pelo meio, houve referências a Lisboa ou a Cascais em algumas letras e a cidade que acolheu o concerto também não foi esquecida. "Esta tarde dei uma volta por Sintra e não encontrei um único português. Há algum português na sala?", perguntou Cole num dos seus breves comentários. Aí sim, estavam muitos. E pelos vistos estão prontos a voltar num (muito provável) regresso do cantor a Portugal, independentemente de terem o coração destroçado ou regenerado.

Piers Faccini, amor à primeira canção

Também britânico e de coração vulnerável, Piers Faccini preparou bem a aconchegante noite de despedida do Sintra Misty. Chamar-lhe primeira parte é algo injusto quando conseguiu ser bem mais do que isso tanto pela duração (cerca de uma hora) como sobretudo pelo resultado.

Faccini não será exactamente um descendente de Lloyd Cole, embora a semelhança física seja curiosa. Musicalmente há algumas aproximações na abordagem aos universos da folk, do rock, do blues ou de alguma country. E se as canções, por si só, não envergonham ninguém, o savoir faire, empenho e simpatia que as acompanharam só ajudaram.

O cantautor começou por arrancar a actuação sozinho em palco, num tema sombrio mas envolvente onde recorreu a alguns loops vocais. Os loops, também instrumentais, surgiram em alguns outros momentos do concerto e complementaram a união de guitarra, harmónica e percussão (do segundo tema até ao final, Faccini dividiu o protagonismo com um baterista).

Não faltaram belos episódios de comunhão com o público, desde o pedido para que os espectadores dissessem que locais lhes eram sugeridos pelos ambientes de uma canção até aoponto alto registado quando, quase fora do palco, o mestre de cerimónias deixou o refrão de "A Storm is Going to Come" a cargo da audiência. Faccini mostrou ainda que as cordas podem dar-se muito bem com as baquetas, quase transformando a sua guitarra numa bateria. E passo a passo, ofereceu um concerto em crescendo que, no final, já tinha há muito transformado a introspecção do arranque em vários acessos de euforia dançável. Quando Lloyd Cole regressar, é bom que não venha sozinho.

Mayra Andrade a meio gás

Considerada uma das melhores vozes de Cabo Verde, Mayra Andradefoi ao Olga Cadavalapresentar o seu novo trabalho, "Studio 105". Apesar da vontade, a artista não cumpriu a promessa e terminou o espectáculo mais cedo, por motivos de saúde.

Começou por ser um atraso e depressa se revelou algo um pouco mais grave. Até subir ao palco, Mayra não sabia se estava em condições para actuar. O público esperou e quase uma hora depois a cantora cabo-verdiana deu inícioao concerto.

Integrada numa pequena formação acústica (com Munir Hossn na guitarra, Rafel Paseiro no contrabaixo e Zé Luis do Nascimento na percussão), Mayra esteve a meio gás. "Estou um bocadinho doente", revelou a cantora, explicando o motivo do atraso e o porquê de não fazer o espectáculo todo. "Preciso de ver um médico", acrescentou.

O público, sempre compreensivo e não poupando aplausos, recebeu mais do que o esperado... mas não teve direito a temas pedidos - "Hoje peço eu", brincou Mayra. "Quando subi ao palco, vinha só para cantar duas músicas, mas vou cantar mais uma", partilhou com uma voz meio cansada.

A cantora acabou por fazer metade do espectáculo, embora sem a força e as surpresas a que habitou o seu público. "Storia, Storia" foi a sua penúltima canção, realçando a sua rouquidão, numa versão mais jazzística e próxima do bossanova. A música foi cantada com o apoio do público e resultou no momento mais alto do concerto, dada a interacção gerada quando muitos a acompanharam no refrão.

O concerto terminou com "Michelle", dos Beatles, aqui interpretada pela voz grave, quente e aveludada característica de Mayra. Entre aplausos a artista despediu-se com um "até breve", ficando a promessa de "um concerto por inteiro". Para quem queria mais, nem tudo se perdeu: uma vez que o espectáculo durou apenas cerca de meia-hora, a organização devolveu metade do valor do bilhete ao público.

O terceiro dia do Sintra Mistypropôs ainda as actuações de Hindi Zahra, Emmy Curl, Frankie Chavez, Noiserv e Minta. Sexta-feira, esta primeira edição do festival recebeuRodrigo Leão e no sábado Joan as Police Woman, entre outros.

@Ana Oliveira e Gonçalo Sá

Lloyd Cole em entrevista:

Piers Faccini em entrevista:

Mayra Andrade ao vivo no CCB: