
Há textos que não são apenas literatura — são chamadas à ação. "Teoria King Kong", de Virginie Despentes, é um desses textos: cru, frontal e profundamente político. A sua adaptação teatral pela Companhia de Teatro de Sintra e Chão de Oliva, em cena na Casa de Teatro de Sintra, coloca em palco um verdadeiro manifesto feminista, com encenação de Paula Pedregal e interpretação de Rita Loureiro.
A obra surgiu como hipótese de trabalho em 2022, durante o planeamento do ciclo de 2025 dedicado à "geografia de género". O texto apareceu quase por acaso, mas ressoou de imediato com o desejo da equipa artística de refletir sobre identidade, corpo e poder. Para a encenadora Paula Pedregal, trazer este texto ao palco implicou coragem, escolhas difíceis e a consciência de que nem todos os temas poderiam ser abordados. Entre os que foram eleitos estão a prostituição, a violação, o prazer feminino e a desconstrução da virilidade, assuntos que continuam, ainda hoje, a dividir opiniões.
Em palco está apenas uma atriz. Mas o monólogo, longe de ser estático, ganha densidade através da presença de Rita Loureiro, que dá corpo e voz a uma multiplicidade de mulheres. A atriz confessa que não conhecia Despentes antes do convite, mas identificou-se rapidamente com a sua postura livre e combativa. Para Rita, não se trata de construir uma personagem convencional, mas sim de assumir uma atitude perante as palavras. O espetáculo procura habitar essa fronteira fluida entre teatro e vida, onde se esbate a distância entre atriz e discurso, e onde a fisicalidade e o olhar ganham tanto poder como o texto. Há um envolvimento com o que é dito, mas também um distanciamento crítico. A encenação recorre a vídeo em direto e música original da autorial de Abel Arez procurando ampliar essa tensão e multiplicar os níveis de leitura.
As palavras de Despentes dão voz a mulheres habitualmente silenciadas ou estigmatizadas: a prostituta, a imigrante, a feia, a alcoólica, a dona de casa, a histérica, figuras que vivem à margem do modelo de feminilidade imposto. E esta não é uma obra que pede desculpa. Pelo contrário: afirma a liberdade como urgência, como grito. "Não somos uma só mulher, não somos um padrão", afirma Pedregal. "Somos muitas. E falamos também dos homens. E de todes."
Para Rita Loureiro, um dos maiores trunfos do texto é a liberdade com que é escrito. Não a condiciona enquanto atriz, pelo contrário, liberta-a. E é essa liberdade que também quer provocar no público. A expectativa de ambas não é apenas que o espetáculo incomode, embora isso possa acontecer, mas que ajude a compreender o mundo. "Se uma pessoa por dia sair da sua zona de conforto existencial, já não era nada mau", diz a atriz. A provocação não está apenas na linguagem crua, mas sobretudo nas ideias: o desafio de Despentes às mulheres que foram violadas para não ficarem apenas no trauma; a recusa de normalizar o sofrimento; o apelo à luta e à autonomia. A encenação sugere uma confrontação com séculos de opressão, procurando fazer do teatro um território de resistência.
A peça está em cena até dia 3 de agosto, Casa de Teatro de Sintra, mas estão já previstas apresentações noutros pontos do país e deslocações internacionais, com destaque para São Paulo e Cabo Verde. A peça, levada pela primeira vez a palco em Portugal, tem despertado interesse além-fronteiras, o que confirma a atualidade e a universalidade do texto da escritora francesa.
As sessões realizam-se de quinta a sábado às 21h30 e aos domingos pelas 16h. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.
Neste espectáculo, o palco assume um papel que vai além da simples representação, parecendo operar com uma espécie de dispositivo crítico, que expõe tensões e levanta interrogações. "Teoria King Kong" é, acima de tudo, um apelo para que cada mulher seja quem quiser ser. Sem pedir desculpa. E para que todos —mulheres, homens e não binários — se revejam na urgência de transformar o mundo.
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