"Não sei quando volto, não quero que ninguém saia sentindo que faltou um pedaço muito grande. Estou empolgada", conta Clarice Falcão ao SAPO Mag, numa entrevista por Zoom, a propósito dos seus dois concertos em palcos nacionais esta semana.
A cantautora brasileira, que soma já três álbuns num currículo que está longe de se restringir à música, atua no Teatro Sá da Bandeira, no Porto, a 16 de junho, e no dia seguinte, 17 de junho, no cineteatro Capitólio, em Lisboa (cinco anos depois de se ter estreado a solo em salas portuguesas na LX Factory, na capital, e na Casa da Música, na Invicta).
Na bagagem traz canções "para chorar, para dançar e para ter raiva do ex" que tanto apostam em moldes acústicos, dominantes nos álbuns "Monomania" (2013) e "Problema Meu" (2016), como no formato eletrónico introduzido no terceiro longa-duração, "Tem Conserto" (2019), um surpreendente momento de viragem com aventuras pela synth-pop e acessos house, techno ou breakbeat.
Embora tenha tido interesse pela música desde cedo, Clarice Falcão tornou-se mais familiar junto do público português através da Porta dos Fundos, projeto cómico criado há dez anos no qual colaborou com Fábio Porchat, Gregório Duvivier ou Letícia Lima. E se já encerrou esse capítulo há muito, o humor tem-se mantido noutros desafios, sendo marca habitual das suas canções ou motor da hilariante série "Shippados" (2019), a mais recente na qual participou como atriz e um dos bálsamos televisivos do confinamento (foi emitida por cá na Globo).
A televisão deverá voltar a ser, aliás, um dos seus grandes palcos. A artista de 32 anos é cocriadora e vai encarnar a protagonista de "Eleita", série em desenvolvimento pela Prime Video, que promete medir o pulso da conturbada tensão política do seu país. Mas sempre com humor, lá está, conforme avançou na conversa com o SAPO Mag.
SAPO Mag - Os espetáculos em Portugal vão apostar num formato mais eletrónico, à semelhança do álbum mais recente, "Tem Conserto"?
Clarice Falcão - Como vou pouco a Portugal, tive vontade de trazer um show bem equilibrado. Nunca fui aí com um show do "Monomania", e isso foi numa época em que eu estava no Porta [dos Fundos]. É um show que terá muito de todos os discos. Não vou fazer o show que geralmente faço do "Tem Conserto", que é mais voltado para essa sonoridade. Vai ter "Tem Conserto", mas vai ter também "Monomania", vai ser um show específico para Portugal.
O que a levou a fazer uma viragem eletrónica no "Tem Conserto" depois de dois discos mais acústicos?
Gosto muito de conhecer coisas novas, universos novos. A nossa vida nos leva para outros lugares também, né? Sempre gostei de música eletrónica, tinha um fotolog de fã da Björk e tal, mas quando comecei a minha carreira tinha o meu violão. Então, fazia uma música mais fofa. E como as pessoas ainda não conheciam muito bem as minhas letras, senti que era uma forma de valorizar a letra, de você escutar a letra com atenção. Depois tive muita vontade de subverter e de brincar com a sonoridade, que era uma coisa que também já fazia no primeiro disco. Por exemplo, fazer uma música muito fofa falando de assassinar alguém. [risos]. Ou de vingança e tal. Mas quis fazer isso com outros géneros, e especialmente música eletrónica, que é uma coisa muito gostosa de fazer. Você pode fazer em casa. O "Tem Conserto" fui eu e o Lucas [de Paiva], que produziu comigo, que o fizemos no chão da minha casa. Não tinha aquela coisa da pressão do estúdio. Deu para brincar com a sonoridade: tem uma música que é um house super para cima sobre... depressão, sobre não querer sair de casa nem da cama ["Horizontalmente"]. Fiz esse contraste de outras formas, não senti que estava me repetindo.
Desde o lançamento de "Tem Conserto", editou um EP de versões eletrónicas, "Eu me lembro", e colaborou com artistas como Letrux e Linn da Quebrada, que também trabalham com a eletrónica e consideram-se feministas, tal como a Clarice. Identifica-se com elas e revê-se numa pop brasileira feminista ancorada na música eletrónica, na qual podemos incluir ainda nomes como Cansei de Ser Sexy ou Noporn?
A música eletrónica, assim como a música folk, dá uma independência muito grande. Essa coisa de você poder fazer em casa, de poder produzir com pouco, com pouco dinheiro, com pouco investimento. Muitas vezes uma artista feminina não tem o investimento, os contactos, e tem de fazer ela mesma. Ou você pega um violão e grava, só com o que você tem, ou você pega o seu synth e grava na sua casa, no seu computador. Nesse sentido, tem algo de rebelde. Se você vai gravar com uma orquestra, precisa de muita grana. Precisa dos músicos, do estúdio, de mixar de uma certa forma... E a música eletrónica não, tem essa coisa que acho que pode ser muito ligada ao feminismo, ao momento de a mulher querer se produzir, querer participar da sua própria produção.
A atitude faça você mesmo, do-it-yourself...
Exatamente, algo de punk! Para eu aprender a tocar violoncelo, vou ter de estudar anos, vou ter de me focar só nisso. Para me produzir eletronicamente, dá para experimentar, existe uma independência. A própria Letícia [Novaes], a Letrux, tem um trabalho que vem do rock. A banda que ela tinha, a Letuce, tocava muito com guitarra distorcida, violão também, tinha uma coisa bem folk... E acho que ela também gosta de explorar ser ela a tocar, ela a sentir, e acho isso muito legal.
Também já se encontra a preparar um quarto álbum. Que vertente é que vai explorar aí? Mais eletrónica, mais acústica, uma mistura? E que temáticas pretende abordar?
Queria fazer uma mistura, sim, um disco em que pudesse explorar coisas que acho que deram certo para mim, que gostei de fazer. Trazer mais coisas acústicas, mas gostei muito da forma de poder produzir em casa. Demorei algum tempo a aceitar que gosto muito das minhas letras com música de pista, dá uma outra camada. O "Tem Conserto" é um disco muito intenso, fala sobre ansiedade, depressão... E queria trazer alguns assuntos um pouco mais leves. Tenho saudades de falar de amor, de relacionamentos. Com tudo o que a gente passou, uma fase tão pesada, me deu muita vontade de compor falando de assuntos um pouco mais leves.
Fala da liberdade de poder criar em casa que a música eletrónica possibilita. Nesse sentido, o confinamento foi um período produtivo e criativo?
Foi e não foi... Tem esse lado de poder estar muito tempo em casa, mas também sinto que viver dá muita inspiração. Para mim, pelo menos. Passar por coisas, ver pessoas passando por coisas, falar com pessoas, ver uma doida na rua passando... Ter uma vida com novidades e com coisas acontecendo me inspira a criar. Tem muita coisa que fiz, mas ao viajar, ver coisas novas, sinto que ainda vai surgir muita coisa para o disco novo.
Além da música, o seu percurso tem passado pelo cinema e pela televisão, como atriz, humorista, argumentista ou realizadora. Tem predileção por alguma área em especial? Como é que as concilia?
A vida parece ter vontade própria, sabe? Nada do que fiz foi muito planeado, há sempre uma coisa que aparece. Até as coisas que eu mesma inventei, tipo discos e tal, parece que há um efeito borboleta: uma frase que deu uma música que deu um disco. O próprio Porta [dos Fundos] surgiu por causa da música. Mostrei os meus vídeos e os meninos do Porta disseram "Queremos você como atriz". Eu não tinha previsto atuar, não foi uma coisa de que fui atrás. É resultado de algo que eu fiz, não caí de bandeja, mas caiu do jeito mais esquisito do mundo. Em vez de conseguir uma coisa de música com a minha música, consegui uma coisa de atriz com a música. E depois da coisa de atriz, o meu disco ficou maior ainda. Então vou fazendo. Gosto muito de me desafiar, apesar de sofrer muito [risos]. Fico sofrendo até fazer, mas devo gostar porque aceito sempre.
Enquanto prepara o próximo disco, também vai voltar à televisão na série "Eleita", da Prime Video, que cocriou e que protagoniza. Como surgiu esse desafio?
Acho que faz uns quatro ou cinco anos que eu e o Célio Porto, o meu melhor amigo, a gente teve essa ideia. Começámos a escrever e desde a ideia até agora ainda não acreditamos que vai rolar. Foi tipo: "E se você fosse governadora do Rio de Janeiro? Que loucura". A gente foi escrevendo e a Amazon deu o ok. E agora vai rolar. Quer dizer, vamos ver, né? Mas eles dizem que vai rolar mesmo.
E surge na altura certa, com as eleições no Brasil, o clima político conturbado...
Como eu disse, a vida é muito doida, vai criando narrativas próprias. A gente teve essa ideia há cinco anos, demorou no começo, depois teve a pandemia, e aí por acaso realmente vamos lançar nas eleições. Que loucura!
A propósito de eleições e política, o Brasil atual tem conserto?
Cara, se Deus quiser, sim, né? Lula 2022! Até agora as pesquisas são muito promissoras, digamos assim. Estou tentando manter um pensamento positivo e acho que tem conserto, sim. É muito difícil olhar para o que aconteceu, desde as coisas mais absurdas até às mais simples, como o preço do arroz. Pensar que estou a fazer uma viagem para a Europa e que para comprar um euro preciso de cinco reais. Desde a mais extrema homofobia, garimpeiros, assassinatos, até você ir ao supermercado. Piorou tanto, é tão absurdo, que é muito difícil as pessoas olharem para isso e não entenderem que obviamente não deu certo. Até quem acreditava que ia dar, que eu já achava estranho, mas não deu certo...
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