A escritora brasileira Conceição Evaristo, recentemente publicada em Portugal, cresceu numa favela “rodeada de palavras”, ultrapassou a pobreza e desenhou uma trajetória literária em que inscreveu o conceito “escrevivência”, uma escrita moldada pela ancestralidade das mulheres negras.
Inédita até este mês em Portugal, a autora foi ao Folio -Festival Literário Internacional de Óbidos no passado fim de semana fazer o lançamento dos dois livros editados pela Orfeu Negro: o romance “Canção para ninar menino grande” e o livro de contos “Olhos d’Água”, vencedor do Prémio Jabuti em 2015.
Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, no seio de uma família muito humilde e numa casa vazia de bens materiais, mas “habitada por palavras”. Como diz a autora, não cresceu rodeada de livros, mas aprendeu a “colher palavras” das histórias e conversas da família e vizinhos.
“Eu tenho afirmado muito que a minha literatura, que a estética mesmo do meu texto, é uma estética que nasce justamente desse contacto que tenho com as palavras, o próprio som das palavras; às vezes determinadas palavras me seduzem pelo som”, disse, em entrevista à agência Lusa.
Exemplo disso é a frase inicial do livro “Becos da Memória” (não editado em Portugal) - “Vó Rita dormia embolada com ela” -, que foi inspirada pela cadência da voz da sua mãe, resgatada dos tempos em que viviam na favela.
A oralidade, com seus gestos, olhares e pausas, foi marcante na sua escrita. A isto, juntou-se uma paixão pela leitura e o escrever, desde a infância, incentivada também pela mãe que, apesar da pouca educação formal, estimulava a criatividade das filhas através de revistas encontradas no lixo.
“Muitas vezes minha mãe sentava connosco e nós ficávamos descrevendo as imagens, [ela] não dava conta do texto escrito e ao descrever as imagens a gente passeava. Eu hoje vejo, minha mãe fazia, por exemplo, oficina da palavra connosco, sem a gente saber e sem ela saber isso, que era muito bonito. Então, por exemplo, ela via uma imagem de uma mulher, supondo, e connosco a minha mãe fazia a brincadeira da gente imaginar o que aquela mulher estava sentindo”.
A entrada livre numa biblioteca pública, onde trabalhava uma tia, determinou em grande parte o seu desenvolvimento literário, porque lhe permitiu ter acesso a livros, mas foi principalmente a figura da mãe a moldar a escritora em que Conceição Evaristo se tornou, sobretudo no que respeita à representatividade da mulher negra na sua obra.
Episódios simples como as noites em que observavam o céu e a mãe explicava as constelações, com base na cultura africana, de que Conceição Evaristo é herdeira, são disso exemplo.
Dessa infância pobre e muito marcada pela figura maternal, Conceição Evaristo recorda momentos especiais, como os raros sábados em que a mãe conseguia comprar leite - porque era caro -, o repartia com as filhas e se sentava com elas a beber na “soleira da porta”, criando um momento “de aconchego e ternura”.
Esses gestos de cuidado e afeto moldaram também a sensibilidade de Evaristo para a escrita e para a observação do mundo, influenciando a sua capacidade de transformar as durezas da vida em textos, afirma.
No conto que dá título ao livro “Olhos d’Água”, a escritora transpõe a mãe para uma personagem e descreve uma mulher que “chorava muito nas horas de dificuldade, geralmente de forma silenciosa”, uma imagem que a marcou muito.
Além das experiências pessoais, alguns autores foram determinantes na sua jornada como escritora, o primeiro dos quais foi Carolina Maria de Jesus, cujo livro “Quarto de despejo. Diário de uma favelada” foi “fundamental”, porque relata a mesma experiencia da favela.
“A minha família toda leu o texto de Carolina Maria de Jesus e a gente era meio que personagem daquele texto, porque o que Carolina vivia nas ruas de São Paulo era o que a gente vivia nas ruas de Belo Horizonte”.
Nessa juventude pobre em que pouco mais havia para fazer senão ler, Evaristo leu muito, autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade, mas também autores estrangeiros e revistas que a mãe conseguia, numa época marcada pela escrita masculina e a quase ausência de autores negros.
Mais tarde, através dos seus estudos e do movimento social negro, Conceição Evaristo entrou em contacto com outros escritores negros como Lima Barreto, Cruz e Sousa, Machado de Assis, Noémia de Sousa e Agostinho Neto, além de “pensadores da negritude”.
Recuando aos anos anteriores a 2000, a autora lembra o quão difícil era para uma mulher negra publicar, e cita uma frase que imprimiu no meio literário e que inspira escritoras negras atuais: “Se para uma mulher branca escrever é um ato político, para nós, mulheres negras, escrever é um ato político e publicar é ainda um ato político”.
E se hoje em dia a publicação de autoria negra é mais acessível do que no seu tempo e as editoras estão mais abertas, isso resulta das “exigências e pronunciamentos” das próprias escritoras negras.
“Eu já venci as barreiras que me foram colocadas e acho difícil hoje me colocarem novamente essa barreira. Eu acho que estou vivendo um grande momento […] e que o que está chegando primeiro não é a cor da minha pele, é a minha obra”.
Por isso, recomenda sempre, “sem modéstia”, que leiam a sua biografia, porque é a trajetória de uma mulher que nasceu numa favela e se tornou uma intelectual respeitada no Brasil, que publicou o primeiro livro aos 44 anos, e aos 77 anos continua a viver um grande momento no seu percurso.
Toda a obra de Conceição Evaristo está impregnada daquilo que apelidou de “escrevivência”, um conceito formado a partir das palavras escrever e viver, mas que tem raízes profundas no processo histórico e ancestral das mulheres negras.
Para ilustrar essa ideia, a autora utiliza a imagem da “mãe preta”, uma mulher africana escravizada na Casa Grande, que tinha o corpo e a voz escravizados e desempenhava funções como contar histórias para adormecer as crianças da casa, não por escolha, mas como parte do processo de escravização.
Em contraponto, a “escrevivência” “não é para adormecer a Casa Grande, mas para acordá-la dos seus sonhos injustos”, diz, explicando: “O princípio que semantiza o ato de 'escrevivência' é um princípio que está ligado à história das mulheres negras. É um princípio que está ligado ao histórico dos povos africanos, seus descendentes escravizados no Brasil”, diferenciando-se de outros conceitos, pela sua transversalidade histórica e ancestral.
Ao contrário da escrita de si ou autoficção, que se esgota no sujeito individual, a escrevivência envolve um sujeito coletivo que atravessa o texto, descreve a autora, utilizando a ideia dos “espelhos de Oxum e Iemanjá”, em vez do espelho de Narciso (da escrita narcísica), para simbolizar essa escrita, que procura refletir a memória coletiva e a beleza negra, muitas vezes rejeitada pela estética de inspiração europeia.
Foi também essa a preocupação que esteve na génese do romance “Canção para ninar menino grande”, a imagem e postura dos homens negros na sociedade brasileira.
Citando a intelectual Luiza Barrios, que observou que o único momento em que o homem negro se iguala ao homem branco é ao exercer o machismo, a escritora admite que fora disso, os homens negros são frequentemente sub-representados em posições de destaque e enfrentam discriminação e repressão.
Lamentando a sua falta de representatividade em áreas como medicina, direito, forças armadas e grandes empresas no Brasil, a escritora menciona também a violência policial e a alta mortalidade entre jovens negros, sublinhando que “a sociedade brasileira é uma algoz competente desses homens”.
Também na literatura, os personagens negros são muitas vezes estereotipados e depreciados, e foi por causa desse representação que Conceição Evaristo criou a personagem Fio Jasmim (protagonista do romance), um homem negro machista, mas cuja fragilidade é revelada no final do texto.
Conceição Evaristo acredita que a literatura tem o poder de fazer as pessoas entenderem que a humanidade é uma condição universal, independente de raça ou classe social, a partir da empatia e comoção geradas pelas personagens, e deseja que os seus livros, ao retratar a realidade negra a partir da sua perspetiva, promovam um “entendimento de que todos somos humanos”.
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